FLORESCER NA PRÁTICA: SOFRIMENTO COLETIVO DESPERTA COMPAIXÃO E BUSCA POR TEMPOS HÁBEIS
Procura por ensinamentos e práticas online cresce em meio a pandemia
Mais tempo livre, o sofrimento coletivo
afligindo pessoas em todas as direções e a busca por meios hábeis para ajudar
os outros fizeram com que a prática formal se tornasse um refúgio para muitos
praticantes. Os CEBBs passaram a ofertar práticas on-line, e a virtualização
permitiu mais conexões, literalmente. Para alguns, a ideia de sanga se
fortaleceu. Para outros, as práticas on-line foram cruciais para a imersão no
darma. Seja qual for a experiência vivida, a pandemia trouxe inúmeras reflexões
sobre a prática. Conheça algumas histórias.
Refugiados em meio
à mata, cercados por araucárias, toda sorte de pássaros e por um clima frio e
úmido: pouca coisa mudou durante a pandemia na rotina dos poucos praticantes
que moram no CEBB Jetavana, um centro voltado a retiros longos localizado na
Serra Geral do Rio Grande do Sul. Apesar de o local preservar os habituais
silêncio e ritmo de retiro, o tutor coordenador do Jetavana, Henrique Lemes,
viu crescer a demanda por orientação e práticas em âmbito virtual. Henrique
conta que o período da pandemia exigiu diferentes atividades. “Teve várias
etapas. Em março, quando tudo estourou, foi desestruturador para muita gente.
Lembro que, enquanto tutor, tive um boom de pessoas pedindo
ajuda, querendo praticar, pois não estavam dando conta. Então, a prática era
como um remédio que a pessoa precisava tomar. No meu caso, precisei oferecer um
apoio a partir da própria prática: ajudar as pessoas a praticarem”,
relata.
Repentinamente, o
tutor viu triplicar o número de pessoas participando dos estudos. Henrique
começou a oferecer Pujas todos os dias pela manhã. “No primeiro dia tinha 30
pessoas participando, às 6h da manhã, algo completamente surreal. No meio dessa
experiência de sofrimento, podemos ver também que o darma era um refúgio para
essas pessoas e oferecia algum conforto. O número de pessoas que têm
participado dos estudos aumentou, a procura por tutoria também. É como se
tivesse surgido repentinamente, pelo próprio mérito que o samsara oferece de nos
desestruturar, a urgência da prática”, analisa.
O tutor também
testemunhou vários insights em meio à sanga. “A pandemia trouxe um testemunho:
as pessoas puderam ver, por elas mesmas e não porque estão lendo ou ouvindo os
ensinamentos, que o darma é verdadeiro, que o darma está falando das coisas do
jeito que elas são, como elas acontecem. Pudemos presenciar as pessoas tendo
esse estalo – ‘é isso, o Darma sempre falou sobre isso: roda da vida,
impermanência, está aqui, está escancarado’”, constata.
“Acho que a
pandemia conseguiu dar uma experiência muito crua, muito direta. Lidar com o
sofrimento, principalmente nas primeiras semanas, foi um tema muito presente,
muito forte. Como ter essa experiência nítida do sofrimento, pessoas próximas
morrendo e ficando doentes, e como transformar isso em algo que não seja
simplesmente uma revolta. Ver esse esforço genuíno das pessoas em transformar
aquilo em compaixão foi muito bonito de ver”, comenta o tutor.
“Essa experiência
da pandemia, de não poder fugir, para quem tinha um roteiro de prática, foi
muito transformadora. Pois não era possível levantar e sair, a pessoa tinha de
ficar com o que a estava incomodando, olhar com profundidade aquilo e lidar com
aquilo. As pessoas também passaram a olhar o que estavam planejando para seus
futuros: se deram conta de que, quando veio o lockdown, todos os sonhos, o
futuro que a pessoa tinha, foram cancelados. Para muitas pessoas foi isso que
aconteceu, e surgiu uma oportunidade de reorganizar a rota. Esse espaço deu uma
possibilidade de ou abrir mais tempo para praticar, ou ver as coisas de outra
forma.”
Henrique Lemes
“Não foi só comigo”
A pandemia ajudou
no reconhecimento de que a impermanência não é um acidente de percurso, não
acontece porque fizemos ou deixamos de fazer alguma coisa. “O fato de
reconhecer que tudo se desintegra de alguma forma tocou o coração das pessoas.
Trouxe a importância de praticar. Penso que todos se viram próximos da morte,
viram pessoas próximas da morte, e isso refez as prioridades de muitos. O
refúgio ficou mais claro. Junto disso teve também a própria expressão da
compaixão que eu vejo que se manifestou nas pessoas. Seja por querer que os
outros não sofram ou por querer ajudar os outros”, pondera Henrique.
Um olhar interno
para o próprio ambiente de prática
Carolina Capelli,
de São José do Rio Preto, São Paulo, levou para casa um ambiente que antes
apenas encontrava no CEBB. “Desde o começo da pandemia, a minha prática mudou
bastante, a minha relação com o darma mudou. Afinal, mudou a vida de todo
mundo. Eu tinha muita dificuldade de realizar a prática formal e meditar
sozinha. Eu frequentava o CEBB sempre que podia, e era a sanga que sustentava a
minha prática. Com a pandemia, o CEBB veio para minha casa porque as práticas
ficaram on-line e passaram a acontecer no ambiente no qual eu medito”,
comenta.
Além de estabelecer
uma nova Terra Pura, Carolina passou a dedicar mais tempo aos estudos durante a
pandemia. “No começo, fiz um retiro atrás do outro, participei dos estudos da
tutoria, das práticas oferecidas pelo CEBB São José do Rio Preto. Eu olhei para
esse caos todo e entendi que era uma oportunidade para me aprofundar, já que eu
estava em isolamento, em casa, e poderia fazer isso. Aproveitei que muitos
facilitadores, tutores e o próprio Lama, de forma muito generosa, estavam
abrindo ensinamentos e práticas de forma on-line. Então, pra mim, foi muito
maravilhoso”, revela.
O que de fato tocou
o coração de Carol foi a conexão em rede com pessoas que antes pouco conhecia.
“Com a intensidade das práticas on-line, só nos restou a conexão virtual, o que
trouxe novas amizades, estreitou os laços entre os praticantes. Me dei conta de
que temos pessoas que estão distantes fisicamente, mas muito próximas da gente.
É um despertar mesmo para essa solidariedade, essas redes, essas trocas, essas
novas possibilidades de estar junto. Não que a gente não tivesse essas
ferramentas antes, mas eu acho que agora elas são a janela da nossa vida. É por
ali que a gente vai se comunicar, que a gente vai se abrir, que a gente vai tocar”,
avalia.
Para ela, o darma é
essencial para atravessar esses períodos. “Nesses momentos, eu acho que o darma
faz total diferença. A gente não vê desespero, não fica com aquele sentimento
de que o mundo está caindo, que o mundo está derretendo. Eu acredito que o
darma segura a onda nesse sentido. A gente vai entendendo como todos esses
processos são cíclicos, são construídos. Compreendemos que temos liberdade
frente às aparências, frente às nossas identidades”, finaliza.
O Darma que chega
até as pessoas a partir da virtualização
Francisco José
Silva Borges, de Vitória (ES), não sai de casa há nove meses. Mora em um
apartamento e, com alguns problemas de saúde, resolveu se recolher. “O fato de
eu ter ficado em casa por conta do isolamento me jogou mais para dentro de mim
mesmo. Aí eu passei a me dedicar mais às práticas, na medida do possível. Com o
tempo que eu tenho disponível, isso foi bastante importante, muito
interessante. Com a chegada da pandemia, os ensinamentos também ficaram mais
fartos, tanto da parte do Lama quanto da parte do meu tutor”, declara o
praticante.
Francisco, que
antes não tinha condições financeiras, tampouco de saúde, de viajar para
participar de retiros, sentiu-se feliz por poder acessar tantos eventos. “Eu
não tinha acesso a muitas coisas. Então, com essa fartura de informações, de
ensinamentos, a pandemia trouxe um presente pra mim. Da minha casa posso
participar de retiros, palestras e aproveitar tantas outras informações que nos
chegam. Sou muito grato por tudo”, diz.
Para ele, os
ensinamentos têm ajudado a encarar as coisas com mais serenidade. “Tudo isso
tem causado uma grande transformação na minha vida. Então, as experiências em
termos de prática, de meditação, de preces, tudo se apresenta de uma forma cada
vez melhor, tudo se apresenta de uma maneira que eu me vejo com mais serenidade
diante de tudo o que está acontecendo. Mesmo numa situação pandêmica, com gente
morrendo, eu próprio passando por esse risco pela idade e pela saúde, estou
conseguindo navegar bem nesse mar de sofrimento graças aos ensinamentos”,
avalia Francisco.
“O darma é a
lucidez, é a única saída. E não existe ajuda melhor para atravessar esses
tempos que nós vivemos, não existe nada melhor do que a lucidez. Essa lucidez
que o darma nos proporciona e que aos poucos a gente vai alcançando
devagarinho. Vamos seguindo em frente”, finaliza.
Fonte:https://bodisatva.com.br/florescer-da-pratica-
sofrimento-coletivo-desperta-compaixao-e-busca-por-meios-habeis/