CHOGYAM TRUNGPA RINPOCHE E O BUDISMO DA LOUCA SABEDORIA

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CHOGYAM TRUNGPA RINPOCHE E O BUDISMO DA LOUCA SABEDORIA

O primeiro livro budista que comprei num centro de darma foi o Comentário Sobre o Ngondro, Instruções Para as Práticas Preliminares Concisas do Budismo Tibetano, de Chagdud Khadro, alguns meses antes de iniciar a prática das preliminares. Nesse livro havia uma menção a Trungpa Rinpoche:
Um praticante ocidental recentemente escreveu sobre um encontro com seu lama, o falecido Chögyam Trungpa Rinpoche, detentor irrefutável de realização espiritual, também famoso por beber muito. Sentado numa sacada, Trungpa Rinpoche fez um sinal ao aluno para que viesse ajudá-lo a caminhar até o quarto. Enquanto carregava Trungpa Rinpoche, o aluno sentiu cheiro de álcool. Quando entraram no quarto, Rinpoche se voltou e disse, “Parece que você tem tido problemas ao meditar, não é?” e fez um gesto na direção de umas almofadas. “Sente ali e medite para mim.”
Quando se sentou, um pensamento cruzou a mente do aluno: “O que esse bêbado pode fazer por minha meditação?” Anos depois do acontecido, ele relatou “Após um tempo sentado em meditação eu o senti em minha cabeça, cortando aquela amarra, desfazendo esse nó e retirando aquele alfinete até que o topo de minha cabeça passou a flutuar livre, e eu atingi uma visão de 360 graus.”
Quando o aluno se curvou para ir embora, Trungpa Rinpoche aconselhou, “Sempre separe o homem do professor.”
Um tempo depois, Lama Padma Samten recomendou Trungpa Rinpoche de forma bastante entusiástica. Uma cópia de “Além do Materialismo Espiritual” dentro de um saco plástico com um post-it “oferenda” estava sobre uma mesa no escritório do CEBB – alguém havia deixado como presente para o centro –, e, após alguns dias olhando para aquele livro perdido, perguntei ao lama se era tudo bem se eu pegasse para ler. A resposta foi “Sim, professor extraordinário, ensinamentos preciosos”. Fiquei muito impressionado que alguém tão certinho, tão evidentemente moralmente ilibado como de fato é o Lama Samten, recomendasse e louvasse tão francamente Trungpa Rinpoche.
Esse é um padrão que se repetiu ao longo dos anos: os professores mais extraordinários, poderosos e gentis invariavelmente louvavam abertamente Trungpa Rinpoche. A lista inclui Sua Santidade o Dalai Lama, Sua Santidade o Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpoche, Dzongsar Khyentse Rinpoche, Traleg Rinpoche e muitos outros. De fato, atualmente, se quero examinar um professor, faço o caminho oposto: pergunto sua opinião sobre Trungpa Rinpoche. Se há qualquer crítica, ou mesmo hesitação, perco imediatamente a confiança.
A máxima crítica que aceito é uma como a de Robert Thurman: “se ele não bebesse tanto, teria vivido mais e beneficiado mais seres”. Porém, mesmo o professor Thurman compreende que os meios hábeis dos seres extraordinários são incompreensíveis para nossas expectativas espaço-temporais. A quantidade de projetos e o legado que Trungpa Rinpoche deixou no seu curto período de 18 anos nos EUA é absolutamente inconcebível. Um mestre como ele opera efetivamente além do tempo e além de qualquer forma particular manifesta.
Dzongsar Khyentse Rinpoche chegou a dizer que as duas únicas comunidades budistas que ele viu funcionando realmente bem no ocidente foram a de Trungpa Rinpoche e a de Chagdud Rinpoche.
Posso dizer até que, francamente, sem Trungpa Rinpoche, minha afinidade pelo budismo teria permanecido extremamente superficial – talvez bastante temporária. Nossa cultura é tão degenerada, e eu, pessoalmente, estou em tanta sintonia com essa degeneração, que valores explicitamente positivos, a princípio, não me atraiam (o que me atraia era exatamente a imagem contraditória de um professor budista alcoolizado, sem nenhuma vergonha de beber, sem nem mesmo esconder o fato – coisa até então inédita para mim). A dissonância cognitiva disso – embora eu mesmo nunca tenha tido grande interesse pelo álcool – me era absolutamente fascinante.
Também ajudava pensar que alguém com um defeito tão humano pudesse ter realização espiritual. Havia alguma chance para alguém como eu.
Algumas pessoas têm o mérito de olhar para um monge de cabeça raspada ou para a figura do Buda e, imediatamente, sentir devoção, querer espelhar aquelas qualidades. Já outras, como eu, sentem devoção por professores esquisitos e ultrajantes, como os mahasiddhas da Índia – professores budistas realizados com uma aparência tão fora dos padrões que, como Dzongsar Khyentse Rinpoche descreve, “você pode achar a ideia da figura deles legal, mas se algum realmente batesse a sua porta, você chamaria é a polícia”.
Creio que não há problema com nenhum dos dois enfoques e em iniciar com qualquer um deles – monge certinho, ou “buda rebelde” –, desde que em determinado ponto larguemos nossos julgamentos e ambos os estilos produzam devoção. O próprio Buda Sakyamuni, em vários sutras mahayana, incitou seus alunos para que renascessem por todo lado – em lugares degradados ou mesmo em âmbitos mundanamente considerados elevados, mas onde a espiritualidade normalmente não penetra. Deste modo, há mestres realizados no budismo que foram bandidos, prostitutas, reis, acadêmicos, vaqueiros etc. Isso (o Vajrayana, de forma geral) é uma tradição budista reconhecida e com mais de mil anos de história.  
Se alguém tem problema com mestres estranhos ou controversos – e realmente é raro que sejam seres de fato realizados como Trungpa Rinpoche (há muito mais mestres falsos, com qualquer aparência, do que verdadeiros) – o melhor é, em todo caso, procurar um professor como Sua Santidade o Dalai Lama. Isto é, alguém que se manifesta na forma de um monge de ética muito pura, reconhecido por milhares de pessoas por sua compaixão ou erudição. Na impossibilidade de ser ele mesmo (porque ele é muito famoso e talvez inacessível como professor pessoal para a maioria das pessoas), alguém semelhante que tenha recebido o aval de muitos mestres. No entanto, algumas vezes de fato é compensador ir atrás dos selvagens, particularmente se eles efetivamente têm o aval aberto e irrestrito de outros grandes mestres que, por sua vez, preenchem o estereótipo de “bom budista” ou “budista bonzinho”. Aí há realmente algo a observar. Esse é o caso de Trungpa Rinpoche, não é algo comum.
Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, em 2001, convocou todos os lamas que ordenou (uns 25 compareceram) para um treinamento de dois meses no Khadro Ling que culminou no Druptchen da “Essência do Siddhi” daquele ano. “Druptchen” significa “grande realização (ou siddhi)” e é uma elaborada cerimônia com de quatro a seis grandes sessões diárias de meditação com várias horas de duração, que inclui o uso de paramentos, instrumentos musicais, vários implementos rituais e uma variedade de oferendas e, enfim, danças sagradas. Os Druptchens podem ter várias durações e podem seguir por meses, mas no Khadro Ling normalmente há dois por ano e eles duram 9 dias cada.
Neste Druptchen é utilizado um texto revelado por Dilgo Khyentse Rinpoche, e em uma das muitas etapas da prática, os “oito nomes do Guru” ou as oito emanações de Guru Rinpoche – estilos que ele usou para beneficiar seres com necessidades diversas – são visualizadas. No contexto do Druptchen, a culminância é com danças diárias referentes a uma ou outra das oito emanações. As máscaras utilizadas na dança foram produzidas pelo próprio Chagdud Rinpoche, com ajuda de seus alunos. Rinpoche ensinou as coreografias aos brasileiros e tudo ainda é realizado, anualmente, exatamente como era no Tibete. É fácil inferir que, se hoje a tradição de Guru Rinpoche está viva no Brasil e agora podemos publicar livros sobre Padmasambhava (e esperar que pessoas sintam afinidade e entendam), isso se deve, sem dúvida, a interdependência com o que Chagdud Tulku Rinpoche estabeleceu por aqui.
Quando retornei daquele retiro especial de 2001, com tantos lamas presentes, ainda com o frescor das bênçãos bem nítidas, encontrei uma caixa de livros me esperando, entrega internacional.

Entre esses livros o tão esperado “Crazy Wisdom”, de Trungpa Rinpoche: justamente uma explicação dos Oito Nomes do Guru – com o enfoque duplo nos ensinamentos mais elevados do budismo tibetano uma perspectiva “psicológica” ou “metafórica” palatável aos obstáculos intelectuais (superstições materialistas) contemporâneos. Uma preliminar para exatamente o tipo de Ioga do Guru presente na Essência do Siddhi. Naquela época eu morava de favor na casa da falecida mãe do Lama Samten, Dona Talita, uma casa que também era a sede do CEBB Porto Alegre. Eu, no ápice do meu momento “vagabundo do darma”, tinha muito tempo livre. Absolutamente fascinado pela profundidade dos ensinamentos, decidi traduzir o livro – sem ninguém me pedir e sem um público específico em mente. Talvez, a princípio, como um modo de eu mesmo me relacionar mais diretamente com o conteúdo daquele texto fascinante.
A tradução seguiu muito rápida. Por vários anos muitas pessoas que por acaso se deparavam com uma cópia, perguntavam quando sairia por alguma editora (eu sempre dizia que achava que nunca). Quatorze anos depois, graças à Lúcida Letra, o livro ganha uma edição. A tradução foi completamente revisada – não ficou parágrafo sem modificação.
A dúvida comum com relação a “Louca Sabedoria” é se ele se trata de um livro adequado para nossos tempos – se as pessoas terão interesse ou se serão capazes de entendê-lo e, talvez mais importante, se não distorcerão a ideia de louca sabedoria.
Alguma distorção é esperada, como a própria imagem de Trungpa Rinpoche pode causar alguns problemas em iniciantes. É comum que pessoas imaturas, mas com algum mérito de encontrar o darma, achem justificativas nas atitudes incompreensíveis de grandes mestres para seus próprios vícios ou idiossincrasias. “Ora, se Trungpa fumou, eu também posso fumar” etc. há vários formatos – mas esse é um erro que, em geral, é resolvido com uma semana de convívio com uma comunidade budista. Não imitamos a atitude externa dos professores. Não só porque eles são “maiores” do que nós (embora eles, em certo sentido, e no mais das vezes, sejam de fato incomensuravelmente “maiores”, ainda que no sentido relativo, que, se formos ver, é só o que conta em comparações mesmo…) – mas porque não estamos na posição daquela pessoa, não estamos na mesma circunstância espaço temporal, não vivemos com as mesmas expectativas e condições. Somos outra pessoa: a mesma ação vinda de nós tem outro sentido, tem outro resultado e tem outra motivação. Mesmo os alunos de Trungpa que tentaram agir como ele, em sua presença, receberam sinais claros de que “não era por aí”.
Em outras palavras, a menção de louca sabedoria e uma ideia superficial sobre ela, pode dar a entender que “vale tudo” no budismo. Mas copiar os mestres de forma leviana é o mesmo que se descobrir, no primeiro semestre de medicina, segurando o bisturi no meio de uma neurocirurgia. E ao começar a cortar o tecido, talvez só então, naquele momento crucial, dar-se conta de que esse negócio de ser médico não combina muito com você. Se, por acaso, a pessoa tem sorte, não terá cortado nada essencial, não terá causado nenhum dano mais profundo. Esse é o tipo de leviandade de copiar o comportamento ultrajante dos grandes professores. É certo que se quebrará a cara e, se for o caso, é melhor que se quebre a cara o quanto antes, porque se demorar muito, o estrago pode mesmo ser grande.
Por outro lado, se atentamos bem ao livro – ou aos ensinamentos dos grandes mestres em geral –, reconheceremos que a louca sabedoria, a sabedoria desmedida não tolhida por nenhum limite ou arrazoamento, que não é outra coisa senão compaixão totalmente destemida é, de fato, apenas a pura expressão de nossa “sanidade básica”, isto é, de nossa natureza de buda. O livro foca essa perspectiva bastante tradicional de que Guru Rinpoche é, no fundo, muito mais do que uma figura histórica, nada mais do que uma espécie de reflexo da nossa própria natureza.
Essa sanidade inata, quando reconhecida e deixada inalterada, se expressa de forma particularmente intensa e não negocia com nada e com ninguém. Ao mesmo tempo, se a pessoa lê as palavras “não negocia com nada e com ninguém” e tenta fabricar algo que chama de “sanidade básica”, embasada nesses conceitos forçados, passando a agir por louca sabedoria porque isso “parece legal”, então a resposta da sanidade inata inseparativa de todos os budas é imediata. Se temos mérito, quebramos a cara rápido, pela compaixão dos budas.
Também a capa do livro pode causar alguma confusão. Das oito formas de Guru Rinpoche de que o livro trata, duas são ditas “iradas”, Senge Dradok e Dorje Drolod. Para alguém que não conheça o budismo tibetano, eles têm a aparência de demônios. Porém, o que os budas de aparência irada expressam é essa forma de compaixão particularmente intensa, ligada ao reconhecimento direto da própria natureza.
O próprio Buda só chamou os maras (obstáculos, demônios, sendo um deles a fixação na ideia de um “eu”) para o combate quando atingiu a iluminação. Se alguém os chama para o combate, um instante que seja, antes da iluminação, tudo estará perdido. Todo o caminho budista se desfaz e o que era caminho budista se transforma numa espécie de prisão em que a incomodação, a projeção do nosso próprio “projeto de praticante” inacabado como um fantasma de justificação passa a ser incessante. E então perde-se muito tempo com sofrimento desnecessário. Pode levar bastante tempo até se achar um professor capaz de nos resgatar desse estado.
Porém, se reconhecemos a sanidade básica, podemos expressar as formas de Guru Rinpoche, e então lidar com maras ou com o que quer que seja, não é problema.
Após Além do Materialismo Espiritual e o Mito da Liberdade, que tratam da transição do mahayana para o tantra, Trungpa Rinpoche escreveu “O Rugido do Leão” (Lion’s Roar, não traduzido para o português), uma explicação dos nove veículos descritos pela tradição nyingma, sua primeira incursão nos ensinamentos vajrayana em livros publicados abertamente.  Imediatamente após O Rugido do Leão, vem este Louca SabedoriaJourney Without a Goal (“Jornada sem destinação”) e Orderly Chaos (“Caos Ordenado”) – os dois últimos sem tradução publicada.
Mas Louca Sabedoria, em certo sentido é um prenúncio dos livros mais sofisticados sobre budismo que Trungpa publicou antes de se dedicar mais aos termas “não necessariamente budistas” do caminho de Shambhala. O texto tem alguns momentos de efulgência e louca sabedoria direta, mas é bem mais acessível do que se fosse apenas isso. Ele, antes de tudo, explica que essa tradição existe e como se manifesta na relação com o professor, e em termos psicológicos. Então, embora algumas pessoas o situem como um ensinamento de topo, ele é mais como uma preliminar para ensinamentos avançados do que propriamente uma transmissão direta deles, embora tenha seus momentos.
Pessoas que precisam de explicações, que sentem devoção por Guru Rinpoche, e que sentem os obstáculos diretos das superstições materialistas são o alvo desse livro. Se você ainda não conhece Guru Rinpoche, também é um bom lugar para começar.
Além de seus potenciais perigos – facilmente dissipados com o mínimo de maturidade e inserção mínima em alguma comunidade budista –, esse é um livro definitivamente adequado para esses tempos degenerados. Particularmente entre aqueles tocados pelas bênçãos de Guru Rinpoche – aqueles em particular abertos à união das linhagens de Shechen Kongtrul e Dilgo Khyentse Rinpoche – para estes, os ensinamentos do Detentor Incessante de Rigpa, estado desperto intrínseco, Chogyam Trungpa Rinpoche são inestimáveis.
Escrito com a aspiração de que mais ensinamentos de Trungpa Rinpoche venham à tona em português, em particular Transcending Madness. Dzongsar Khyentse Rinpoche, durante ensinamento sobre o livro no centro de Trungpa Rinpoche em Halifax, o elogiou como sendo “o mesmo que um tantra raiz”. Um texto sobre os seis bardos bastante difícil, também foi extremamente louvado por Lama Padma Samten em várias ocasiões.
Fonte:http://www.budavirtual.com.br/chogyam-trungpa-rinpoche-e-o-budismo-da-louca-sabedoria/
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