PARA O BUDISMO, SÓ O BUDA SALVA?
Pema Dorje
A perspectiva predominante, a partir da
modernidade, com o abandono das religiões tradicionais e a secularização
multicultural da sociedade, é que, na medida em que a espiritualidade tenha
valor, ela não é posse de uma instituição ou forma particular.
A maioria das pessoas hoje diz
professar uma “espiritualidade não religiosa”, e declara respeitar as mais
diversas religiões, supostamente aproveitando o que parece bom de cada uma
delas. Por outro lado, poucas pessoas desenvolvem prática coerente ou atingem
os resultados propostos pelas disciplinas espirituais.
Neste artigo buscarei avaliar essa
tendência predominante em termos dos ensinamentos tradicionais budistas que
dizem respeito aos “três defeitos do pote”.
O universalismo é a crença de que todas as tradições
religiosas do mundo possuem um cerne comum, e que são relativamente
intercambiáveis. A secularização da espiritualidade pode ter muitas
consequências positivas, em termos do convívio multicultural e valores
humanistas, mas alguns aspectos do universalismo são claramente temerários.
Mesmo que a motivação superficial pareça ser a melhor de todas, isto é,
tolerância e convivência pacífica, há uma tendência de reduzir o outro ao que
se projeta nele, e enfim como que anular a alteridade por decreto.
O principal problema da perspectiva de “todos estão
dizendo as mesmas coisas com palavras diferentes” é que existe uma grande
possibilidade, de, ao tentar traduzir tudo o que o outro está dizendo para
nosso referencial, ficarmos surdos ao que ele esteja justamente dizendo de
diferente e desafiador – e de realmente necessário. O que o outro tem a
oferecer é jogado pelo ralo, e platitudes sem utilidade alguma reforçadas. A
partir do momento em que “já sabemos” o que está sendo apresentado, observamos
o que se apresenta de acordo com referenciais prontos, e isso é apenas rigidez
cognitiva. Um tipo de cegueira “em meio à visão”, bem conhecida no budismo,
onde exatamente o que estamos
vendo acaba nos impedindo de reconhecer o que poderíamos ver.
Assim não acontece um encontro verdadeiro com a
alteridade. O que acontece acaba sendo apenas uma redução do outro a nossas
prerrogativas. O que pode até ser pacífico – quando não é condescendente ou se
torna uma violência em termos de redução do interlocutor num diálogo a mero
repetidor das nossas próprias visões. Mas sem dúvida a posição de abertura
perante o diferente é sempre um desafio a todos – tendemos naturalmente a
enquadrar a diferença de acordo com nossa própria falta de flexibilidade
cognitiva, e algumas vezes recusamos até mesmo reconhecê-la.
Em certo sentido, podemos preservar algo da ideia
de “cerne comum” no que tem de apaziguador: podemos considerar esse cerne o
próprio fato de que todas as tradições, no fundo, desejam abertura à
diversidade. Na verdade, sabemos que muitas não querem, ou pelo menos não estão
histórica ou presentemente focadas nisso – mas pensar assim é um claro antídoto
à violência possível no universalismo, bem como a violência comum do
sectarismo. Todas as tradições e pessoas são inerentemente compassivas, e
compaixão é o olhar o outro como ele é, na sua própria situação, sem projetar
julgamentos. Isto é, permitir que a riqueza da diversidade seja preservada, e
reconhecer que todas as tradições podem lidar bem com o que lhes é alheio – e
que, aliás, seus melhores valores surgem exatamente quando lidam bem com o que
lhes é estranho.
Não reconhecer a diferença, ou a reconhecer como
algo negativo são atitudes totalitárias de existência – e o universalismo, que
parece tão positivo, muitas vezes é culpado de exatamente não reconhecer a
alteridade enquanto alteridade. Na visão do Dharma do Buda, a diferença pode
ser reconhecida como verdadeira, e como uma riqueza.
É nesse sentido que Sua Santidade o Dalai Lama se
apropria até mesmo dos referenciais seculares, e supera o universalismo
rasteiro. Como o Darma do Buda se coaduna com a realidade, e é o melhor para os
seres – e todos os seres, independente de tradição religiosa, possuem uma
natureza livre para olhar o outro como um ser livre – o que a princípio poderia
ser uma atitude extremamente violenta (cooptar a todos ao budismo) se torna a
atitude suprema da paz: deixamos os melhores valores para algo que independe de
tradição. Por que dizer que a perspectiva sofisticada é a budista? Ela é de
quem quer que a exerça, independente do nome que tenha. O Buda não detém o
“direito autoral” da mente aberta que permite o respeito à alteridade.
Em seguida, porém, consideremos alguém que olhou o
exemplo do Buda e resolveu seguir seus passos. Claro, há quem veja muitos bons
exemplos por todo lado, inclusive fora do budismo, e os siga a todos. E isso
pode ter consequências de vários tipos, produzindo resultados enriquecedores,
os resultados esperados naquelas formas específicas, ou até se tornar uma forma
frívola de encarar as coisas.
No entanto, foquemos alguém que viu valor
particularmente no Buda. Isso não é tão fácil, porque nossa tendência ao
encontrar o budismo é jogar sobre ele todo tipo de expectativa que vem do que
já conhecemos, que são as tradições teístas – ou mesmo o oposto disso, o
secularismo materialista – e assim criamos um budismo que não existe, mas é
apenas nossa projeção estereotípica.
Digamos, no entanto, que alguém tenha conseguido
dissipar um tanto o véu de suas próprias concepções e efetivamente viu valor no
Buda. Um Buda que em algum porcentual ínfimo já não é apenas uma projeção das
próprias expectativas – mas alguém que surge com um método novo e desafiador.
Digamos que isso tenha acontecido: o que fazer daí em diante?
De modo geral, quando usamos a palavra “tradição”,
estamos evocando algum tipo de coerência. A própria ideia de coerência pode soar careta nesses tempos
“multifocais”, mas ela significa apenas “não dissipação”.
Essa palavra pode ser talvez melhor entendida em
seu uso comum na ciência.
Quando alguém desenha um circuito eletrônico, esse
engenheiro normalmente deseja a maior eficiência possível: energia custa caro,
e tem impacto negativo sobre o ambiente. Assim, um circuito bem desenhado busca
usar a maior parte da energia que entra nele para nada mais do que realizar a
função designada ao dispositivo. Ainda assim, nenhum circuito eletrônico pode
ser executado com perfeição: sempre haverá uma parte da energia que, por
imperfeições impossíveis de eliminar totalmente, se dissipa como calor – e é
por isso que tudo que ligamos na tomada esquenta. Quanto melhor desenhado um
dispositivo, menos dissipação ele causa, menos ele desperdiça energia e
esquenta o ambiente (aquecedores elétricos seriam à exceção, mas mesmo estes
não são as formas mais eficientes de aquecer o ambiente).
O mesmo ocorre com relação à prática espiritual.
Para começar, a
própria ideia de prática espiritual nem sempre existe em outras tradições
religiosas. Mas, no budismo e em algumas outras poucas tradições, existe a
noção de que a espiritualidade é, em grande parte, ou até principalmente, algo
que se convencionou chamar de “treinamento da mente”. As tradições têm
cerimônias, encontros, rituais, rezas, estudos – mas raramente estas coisas são
tidas como treinamentos para fazer desabrochar qualidades inerentes. As
tradições tem todo tipo de motivação para realizar as atividades que realizam,
mas no budismo a motivação é esta. A mente é plástica, e podemos revelar suas
qualidade inatas – e isso supostamente traz felicidade e profundidade para
nossa vida e para as vidas dos outros.
Para o budismo, podemos nos dedicar a ampliar
nossas qualidades naturais, tais como a compaixão. O que chamamos de
“meditação” é exatamente um período formal que usamos para cultivar na mente
essas qualidades, o que traz benefício para nós mesmos e para todos com que
temos conexão. Outras tradições se aplicam nas atividades em que se aplicam com
as mais variadas motivações, tais como agradar uma divindade poderosa, ou
manter tradições e lembrar os antepassados, ou tentar efetuar alguma alteração
mágica nas circunstâncias externas para melhor… Há todo tipo de motivação, e
algumas vezes há uma perspectiva semelhante a do budismo, mas nem sempre tão
claramente idêntica ao budismo, e raramente ou nunca exatamente como no budismo.
No budismo, reconhecemos a limitação de nossas
qualidades, e reconhecemos a potencialidade de crescimento – e assim um
treinamento se torna possível.
Uma dessas qualidades diz diretamente respeito à
dissipação e coerência – então se torna um “metatreinamento”, treinamos boas
qualidades e também treinamos as qualidades que nos ajudam no treinamento. A
distração não é ruim apenas porque potencialmente nos deixa confusos – mesmo
que de fato muitas vezes sejamos tão distraídos que até mesmo nossa confusão
pareça o normal. A distração é ruim principalmente porque leva ao desperdício
de recursos importantes. A tradição budista nos adverte que não sabemos por
quanto tempo essas condições boas vão se sustentar – tanto em termos de nosso corpo,
quanto do ambiente, e de nossas circunstâncias pessoais – então se podemos
treinar a mente agora, é isso que devemos fazer. É o melhor uso do tempo, e é
um uso do tempo de que certamente não nos arrependeremos.
E então, dentro da diversidade de métodos
apresentados pelo Buda, recebemos alguns pontos cruciais de nosso professor –
alguém que obteve pessoalmente alguns dos resultados do caminho – e nos
limitamos artificialmente a fazer apenas certas práticas, focar no estudo de
certos aspectos particulares, de forma a superar a dissipação. Fazemos isso
conscientemente, isto é, aceitamos a artificialidade desse treinamento limitado
como algo que vamos usar por um tempo para então, num determinado ponto,
descartar.
O budismo é uma das únicas tradições que prevê seu
próprio fim, em dois sentidos. Uma hora o mérito dos seres se esgota, e o
budismo para de ser preservado e funcionar. Isso se embasa na crença da
impermanência, e podemos dizer que é um aspecto ruim da impermanência, uma vez
que os ensinamentos do Buda nos são caros. Mas, só porque gostamos deles, isso
não significa que são eternos. O outro sentido é mais interessante: quando
realizamos o estado de Buda, não precisamos mais dos métodos do budismo. Podemos seguir sustentando esses
métodos para benefício dos outros, mas para nós, eles não têm mais utilidade
alguma, e nem necessidade de existir. Esses dois aspectos do ensinamento
budista são peculiares ao budismo, outras tradições não veem a si mesmas dessa
forma.
E isso é porque outras tradições, evidentemente,
têm outras perspectivas. Este texto não está dizendo que todos precisam pensar
o mundo como os budistas e reconhecer as urgências propostas pelo Buda, e
entender, de acordo com isso, qual é o melhor uso desse tempo e dessa vida
humana. Este texto tem como objetivo incitar, principalmente naqueles que já
veem valor nessas prerrogativas e nesse modo de pensar, a necessidade de
coerência e de tentar evitar a dissipação. O que inclui se limitar aos
ensinamentos budistas e a certas práticas no contexto budista – por uma questão
eminentemente prática.
A tendência para dissipação é reconhecida nos
textos clássicos, e é algo com que qualquer praticante, moderno ou não, sempre
precisou lidar. Isto é, sempre houve várias coisas acontecendo, vários
professores ensinando várias coisas, a tendência de interpretar tudo de acordo
com nosso arcabouço, e a tendência a não levar algo até o fim antes de começar
outra coisa.
Essa situação sempre foi assim. Ela pode ter
piorado um tanto, como tantas coisas ligadas a falta de atenção e coerência
parecem ter piorado no mundo moderno, mas sempre foi uma realidade para todos
os praticantes.
Uma vez que o Darma do Buda é uma tradição
extremamente vasta, a dissipação pode ocorrer, e muitas vezes ocorreu, mesmo
dentro do escopo tradicional do budismo.
Na modernidade a dissipação ocorre entre as várias
ofertas do que Trungpa Rinpoche chamava de “Supermercado Espiritual”. Em outras
palavras, muita gente acaba fazendo qualquer coisa de qualquer jeito,
misturando vários métodos budistas, e ocasionalmente não budistas, o que termina
não sendo produtivo para ninguém. Algumas vezes dois métodos podem ser bons,
mas exatamente como com dois remédios incompatíveis, sua interação pode ser
prejudicial. Existe, portanto, um cuidado muito grande por parte dos
professores autênticos em prover um treinamento coerente.
Ainda assim, algumas pessoas deliberadamente buscam
a dissipação como se fosse algo positivo; outras reconhecem a dissipação, mas
ainda assim se veem, por força do hábito, vinculadas a considerar as coisas e
suas atividades de forma semi-aleatória. Isto é, mesmo para quem reconhece a
dissipação, e a reconhece como um problema, existe um esforço em não se
dissipar.
De modo geral, é bem verdade que, se um cristão não
se dissipar na sua crença cristã, ele também será um melhor cristão. E então
algumas vezes se diz que os métodos de treinamento da mente do budismo podem
ser aplicados por todos, e até no contexto secular. Até mesmo para trabalhar
melhor, ou ter mais saúde – ou se relacionar melhor com os outros.
Porém, mesmo que esses métodos budistas – alguns
deles historicamente até anteriores ao budismo! – se apliquem a todos os casos,
existe uma perspectiva própria do Darma do Buda que diz respeito a certas
visões de mundo e tipos de resultado que se almeja. Algumas pessoas podem dizer
“bom, os cristãos esperam se comportar de uma determinada forma e ir para o
céu, e os budistas esperam se comportar de uma determinada forma, nem tão
diferente assim, e ir para o nirvana. Pronto, é a mesma coisa!”
Porém, os objetivos não são, de forma alguma, os
mesmos. Podemos oferecer meditação em contexto secular, ou ensinar meditação
para pessoas de outra religião – isso tudo é uma questão de generosidade. Isto
independe do fato de que as pessoas (particularmente as que reconhecem valor no
budismo) precisam deliberadamente agir para diminuir a dissipação, o que inclui
manter uma coerência também em termos de objetivo, motivação e visão. O fato de
a meditação ser boa para qualquer um, mesmo alguém de outra religião ou que
mantenha uma perspectiva secular, não elimina a necessidade de menor dissipação
– o que para alguém interessado no budismo significa (também) se ater ao
budismo.
Então, o Buda nem mesmo salva – mesmo porque
“salvação” é um conceito cristão, e porque o Buda disse que apenas ensinou o
método: quem tem que levá-lo a cabo é cada praticante. Porém, de fato, só o
budismo leva aos resultados que o budismo preconiza – e que são específicos do
budismo, no qual o treinamento de não dissipação, que ensina a focar o budismo e
certas práticas dentro do budismo, é essencial.
Portanto, o budismo não salva, mas apenas o budismo
produz todos os resultados que o budismo preconiza. Parece óbvio, mas muitas
vezes afirmar isso soa, para algumas pessoas, o cúmulo do sectarismo.
Perceba que toda essa confusão vem do fato de que
temos uma mente aversiva, que produziu o sectarismo – e então inventou o
universalismo como uma solução para ele. Com o universalismo, nos sentimos
envergonhados de assumir um treinamento não dissipativo, isto é, um treinamento
em que nos comprometemos com algo e não buscamos qualquer coisa aleatoriamente.
Tudo que isso quer dizer é: praticar o método do Buda envolve se comprometer
com uma visão e uma prática – se comprometer com uma coisa não é de forma
alguma uma ofensa perante as outras coisas. Porém, ainda assim, devido a nosso
defeito de sectarismo, e devido ao remédio mal desenhado do universalismo,
muitas vezes vamos acabar conversando com pessoas que vão se sentir ofendidas
pelo mero fato de que seguimos um treinamento coerente – só porque não queremos
botar uma imagem de Iemanjá em nosso altar budista, ou algo assim. Só porque
não queremos bater tudo no liquidificador, ou evitamos cuidadosamente dizer que
tudo tenha o mesmo valor – mesmo porque não conhecemos todas as tradições do
mundo e muito menos seus métodos e resultados.
A diferença existe, e é uma riqueza. Além disso, o
mero reconhecer dos objetivos e motivações budistas não é tão simples,
principalmente porque normalmente estamos cheios de preconceitos e projeções
com relação ao que sejam. Até para descobrir bem o que se está fazendo, e com
que nos comprometemos, precisamos de uma mente que vá além de sectarismo e do
universalismo.
Há alguns exemplos de dissipação ligados a questões
puramente linguísticas e culturais, das quais nenhum de nós pode fugir.
Em certo sentido, se uma criança nos pergunta algo
como “O Dalai Lama é para o budismo assim como o Papa para o cristianismo?”
podemos até, dependendo do tempo disponível, dizer algo como “bom, mais ou
menos, é…”. São figuras importantes nas suas religiões específicas, pelas quais
muitas pessoas têm devoção e respeito, e das quais esperamos opiniões
abalizadas com relação a cada tradição respectiva e talvez, principalmente,
questões modernas em relação à visão tradicional. Além disso, o Papa às vezes
usa um chapéu esquisito, e o Dalai Lama também – e ambos usam roupas bem
próprias. Eles também não têm, até onde se saiba, namorada ou filhos.
Em certo nível, muito rápido, rasteiro e primário,
existe uma correspondência. São homens de saia que falam de religião! E, afinal
de contas, queremos entender melhor o que é essa coisa nova para nossa cultura,
que é a figura tão popular e conhecida do Dalai Lama. Buscamos referenciais
conhecidos para entender esse fenômeno. É natural.
Mas, logo no próximo nível, é preciso traçar
distinção. As instituições são vastamente diferentes. O Dalai Lama é
reconhecido numa linha de renascimentos, coisa que é específica da tradição do
budismo tibetano – e há ainda mais formas de budismo do que formas de
cristianismo. E o budismo tibetano não tem equivalência em tamanho, história ou
influência, com relação ao catolicismo. Portanto, num nível muito infantil e
rasteiro, é possível entender algo do Dalai Lama através da figura do Papa –
mas se queremos qualquer tipo de nuança, precisamos ressaltar justamente as
vastas diferenças. A estrutura hierárquica do budismo é muito diversificada, e
mesmo a estrutura hierárquica do budismo tibetano (que varia em cada escola, e
em cada centro de cada escola!) é tremendamente diferente da estrutura
hierárquica da Igreja Católica.
Da mesma forma com as ideias de céu e nirvana. Para
uma criança, podemos dizer algo como “sabe como é bom o chocolate?”, e
explicamos céu e nirvana de acordo com o sabor do chocolate. É algo muito bom
que “vem depois de você comer sua comida toda direitinho”. Claro, se temos
tempo, podemos discutir que as ideias de céu nas várias formas de cristianismo,
e em outras religiões, tem uma diversidade muito grande. Às vezes são 72
virgens, algumas vezes é uma contemplação imutável, incorpórea e eterna da
beleza ou do intelecto divino. Da mesma forma “nirvana” ganhou várias acepções
dentro de fora do budismo.
Peguemos então duas definições quaisquer
razoavelmente incontroversas: céu é estar na presença de Deus, nirvana é estar
livre de aflições mentais, tais como raiva, orgulho, etc. Em certo sentido, até
podemos conceder que alguém estando na presença de Deus não seja capaz de
desenvolver tais aflições, e então esteja “livre” delas. Mas de modo algum isso
é um aspecto enfatizado nos ensinamentos sobre céu – algumas vezes
bem-aventurança, outras vezes entendimento, são enfatizados. A pessoa
aparentemente vai estar de bem, muito de bem, quase como num orgasmo eterno, e
sem dúvidas, ou com uma clareza mental muito grande. Mas nunca se diz
explicitamente que essa pessoa não venha a ter inveja ou orgulho nessa presença
– ainda que se possa forçadamente inferir que talvez não. Não vem ao caso,
aparentemente. E há, nas escrituras, exemplos até de anjos que sentem inveja e
orgulho mesmo na presença de Deus. Então a confusão é grande.
Além disso, essa posição de contemplação divina é
algo “eterno”, mas que tem um início no tempo. Na visão da lógica budista,
coisas que tem um início no tempo não podem ser eternas. Então talvez seja
difícil convencer um budista com relação a ideia cristã de céu.
Nirvana, por mais que nossa tradição secular tenha
cooptado o termo e algumas vezes o transformado efetivamente numa espécie de
céu (ou banda de rock), na tradição que primeiro o usou no contexto religioso,
diz mais respeito ao não surgimento das tais aflições mentais – coisas como
orgulho e raiva. Uma cessação ou extinção completa da energia de hábito que
produz aflições mentais. A mente é treinada a um ponto em que nem mesmo os
impulsos sutis de tais aflições irrompem, independente de acontecimentos
externos. O impulso para a raiva, mesmo quando alguém nos prejudica, é
totalmente cortado.
E como se atinge o céu? Obedecendo a Deus e fazendo
boas obras no mundo, ou apenas aceitando a Jesus ou Deus: varia um bocado. O
nirvana, por outro lado, não é obtido através da obediência ou aceitação, meros
atos, fé ou crença. Embora as boas obras ajudem, elas não são sua causa
central, que é o treinamento da mente. Então são coisas vastamente diferentes,
e, ainda que em poesia e filosofia, vez que outra as duas coisas se tornem um
lugar, deixem de ser um lugar, virem um estado mental, etc. São objetivos
diferentes, conquistados com práticas diferentes – com algumas raras
intersecções.
Com isso se quer dizer que a noção de céu está
errada? Para alguém que pratica o budismo, várias noções de céu (presentes no
hinduísmo) são
efetivamente noções equivocadas, a serem ativamente evitadas pela prática. Então o budista, na sua prática, as deve considerar
como erros. Isso quer dizer que o budista precisa fazer proselitismo a um
cristão (ou hindu) que este sustenta “visões errôneas”? De forma alguma. O
darma só deve ser ensinado a alguém que pede explicitamente pelo darma, e, além
disso, pode haver mesmo no budismo formas de incluir certas visões de céu como
prática – no que elas não tenham os aspectos errôneos, que são claramente
definidos. O respeito pela alteridade inclui permitir que os outros cheguem a
suas próprias conclusões, e usem seus próprios meios para isso.
Os Sutras contam que o próprio Buda usou uma noção
de céu também presente no hinduísmo como promessa para um praticante, de forma
que ele praticasse moralidade. Mais tarde, quando ele já praticava moralidade,
e havia acalmado um tanto sua mente, o Buda mudou o ensinamento e disse que o
objetivo não era ir para o céu. O Buda não fala só “verdade”, o Buda é, antes
de tudo, pragmático – todas as tradições budistas reconhecem os “ensinamentos
expedientes”, isto é, afirmações relativamente falsas, mas podem ser benéficas
para certas pessoas em determinadas situações e em certos tempos.
E, da mesma forma, há perspectivas budistas em que
o mero nirvana, a extinção completa das aflições mentais, sem o revelar
completo das qualidades mentais correspondentes, não é tampouco o objetivo
melhor de prática. Isto é, para algumas tradições, até mesmo a noção de nirvana
é um ensinamento expediente.
De modo geral, o budista considera, para alguém que
não é praticante do Darma de Buda, boas as noções religiosas, que, ainda que em
seu cerne equivocadas, levem à prática da moralidade. Assim, Sua Santidade o
Dalai Lama já disse que se uma senhora idosa pratica a virtude porque acredita
em Deus, e é possível que ela abandone a virtude se for convencida por
argumentos budistas da inexistência de um criador, seria desvirtudeapresentar
a versão correta dos fatos para essa senhora.
E, veja bem, estou aqui assumindo um palavreado
franco, historicamente presente na tradição budista, em seu diálogo não
violento com inúmeras tradições. O budismo não sustenta uma versão Poliana dos
fatos, em que “todos podem estar certos”: dizer que o outro está errado e seguir amigo, isto é tolerância. Além disso, há erros e erros, um erro que tenda ao acerto é melhor do que um completo erro – e
o budismo não se incomoda em promover certos erros que tendam ao acerto, dentro
e fora do budismo.
Fingir que o outro está certo, ou encontrar uma
compatibilização em alguma gambiarra verbal, isso é desconsiderar a alteridade.
Respeitar é tratar o outro como capaz de chegar a suas próprias conclusões, e
isso implica explicitar o que verdadeiramente se considera dessas conclusões.
Muitas pessoas hoje em dia acreditam que tolerância é dizer “no fundo você
pensa como eu, só que não sabe”: isso é suprema violência, porque destrói a
alteridade, remove a diversidade por decreto.
Além disso, impossibilita seu próprio entendimento
da alteridade, ou, no caso do budismo (que é uma espécie de alteridade para nós
que não fomos criados dentro dele), o próprio entendimento daquilo por que nos
interessamos.
A partir dessas reflexões, precisamos, portanto,
reconhecer alguns pontos:
1. Existe diferença entre alguém
que se compromete com o budismo e alguém que não se compromete; esta diferença
é uma riqueza, e deve ser reconhecida tanto como uma diferença quanto como uma
riqueza; isso não significa rebaixar os outros ou ser narcisista com a escolha
do caminho budista, mas significa manter clareza da alteridade, e da riqueza da
alteridade: saber se posicionar perante o outro com verdadeiro respeito à
diferença, que a reconhece e aceita como diferente – o que inclui o potencial de
estar simplesmente errado; isso vale também para os diferentes métodos e tradições
budistas;
2. O compromisso com uma forma
particular pode ser superficial, e deve ou não se aprofundar de acordo com
nossa disciplina de não dissipação, nosso cultivo da mente;
3. Nossa tendência natural é a
confusão e a dissipação, portanto se reconhecemos valor no ensinamento budista,
devemos ativamente procurar usar os métodos budistas – que tanto são o que
escolhemos e reconhecemos como valoroso, quanto possuem as ferramentas para,
através da disciplina, evitar a confusão e a dissipação.
O leitor desse texto pode ou não desejar se
comprometer com o budismo, ou já se considerar comprometido com este. Mas mesmo
a pessoa relativamente comprometida pode sentir, pela pressão do universalismo
ubíquo em nossa cultura, e pela vontade de não parecer sectário, que precisa
estar “aberta” a todas as influências religiosas – já que “tudo é positivo”.
Nesse caso, podemos falar em três etapas no
relacionamento com o budismo.
1. A pessoa se interessa pelo
budismo como forma de melhorar sua vida, talvez até sua relação com trabalho,
saúde, as outras pessoas ou a tradição religiosa que já pratica. É algo mais
que acrescenta em termos de conhecimento e método. Ela pode fazer alguma
prática de forma sistemática, mas não definiu sua motivação como budista,
apenas anseia uma melhoria não definida, ou definida em termos não budistas.
2. Reconhecendo no budismo algo
especial, ela decide se comprometer, e ouve ensinamentos e faz prática formal e
na vida cotidiana. Ela assume uma regularidade, uma consistência: coerência e
não dissipação se tornam objetivos claros.
3. Tendo obtido certeza e
resultados na prática budista, ela se relaciona com o mundo ela mesma como um
exemplo dos ensinamentos budistas. E então ela se relaciona com a alteridade
com algo a oferecer, e não necessariamente buscando algo.
Cada uma dessas etapas tem um aspecto diferente no
relacionamento com outras tradições religiosas.
Na primeira etapa, a pessoa pode e deve
experimentar várias tradições, e mesmo as várias formas de budismo. Nessa
etapa, isso é perfeitamente válido. Apenas é importante já considerar a questão
da dissipação, e evitar uma atitude de “supermercado espiritual” – considerar
que está examinando tudo que está disponível, mas também claramente sabendo que
não adianta ficar para sempre nessa situação. É preciso manter a mente aberta,
mas ao mesmo tempo, ansiar por um compromisso, passar no caixa, ir para casa, e
fazer sua refeição. Algumas pessoas tratam a espiritualidade como um eterno
showroom, onde se maravilham com os vários produtos que nunca vão adquirir,
muito menos usar.
Na segunda etapa, ela foca sua prática a alguns
poucos métodos de uma tradição específica. Aqui o compromisso é reconhecido
claramente. Assim, o melhor é se ater ao compromisso e sistematicamente evitar
dissipação. Você não lê qualquer coisa que quer ou que aparece, nem que seja
budista: você estuda os textos recomendados pelo seu professor. Você não faz
qualquer prática sugerida em sua linha do tempo no Facebook, você segue um
professor principal e, a partir dele, e com a benção dele, você porventura
visita outros. Você pode ter muitos professores, mas você não fica trocando de
professor ou de prática – você se atém aos compromissos com meia dúzia de
métodos que você consegue praticar de forma consistentemente, e você altera sua
rotina de acordo com as recomendações de, preferencialmente, um professor só.
Embora você ouça e encontre vários professores, e receba muitas bênçãos, você
sempre retorna para aquele que conhece bem você, e você resolve com ele
qualquer alteração na sua rotina de práticas.
Na terceira etapa, quando você obtém certas
realizações em certas práticas, então pode novamente se expandir, buscando
trazer benefícios, através de seu exemplo, para outras tradições budistas e não
budistas – numa atitude não sectária.
Como exemplo disso, podemos falar do budismo
tibetano.
O budismo tibetano tem centenas de sub-escolas. Uma
dessas sub-escolas é chamada “ri-med”, “sem escola”, a tradição não sectária,
que se pronuncia “rimê”. Na verdade, existem vários enfoques rimê, então se
pode dizer, ironicamente, que há várias escolas de “não haver escola”.
Há várias perspectivas sutis de como lidar com a
alteridade, e de como é possível – ou não – misturar os diferentes métodos.
Algumas vezes aparece alguém no centro budista e
diz “eu sou um praticante rimê” – e a pessoa geralmente está querendo com isso
dizer que não tem compromisso particular com escola alguma; que considera todas
boas, e que mantém essa atitude não sectária e magnânima. Porém os praticantes
mais velhos meio que riem uns com os outros, uma vez que se dizer rimê é um
tanto pretensioso! Se entendemos o contexto de onde vem essa expressão, sabemos
que a pessoa se diz rimê como uma mera afetação.
Os professores rimê historicamente eram aqueles
que, sendo reconhecidos como tulkus, isto é, mestres renascidos – que
geralmente eram associados a um mosteiro (e, portanto, tradição) específica – e
que tendo passado por longo e árduo treinamento em uma meia dúzia de métodos de
linhagens específicas, e estudado muito, passaram a coletar textos e práticas
de tradições que consideravam em perigo de extinção, devido a pressão sectária
das linhagens mais comuns, predominantes e poderosas. Eles já eram considerados
mestres realizados, e então eles se dedicavam a preservar tradições de nicho,
métodos raros e quase esquecidos.
É quase como um connoisseur de perspectivas elevadas. É um professor de professores, numa
progressão exponencial. Alguém que preserva, classifica e detém mesmo as
perspectivas menos populares em termos políticos ou de aclamação pública – num
dado momento histórico.
Porém, mesmo esses grandes mestres começaram em
seus próprios mosteiros, com seus próprios conjuntos de métodos. Só depois de
muita prática e vasto reconhecimento público eles começam a usar seu prestígio
para preservar tradições enfraquecidas.
Um exemplo disso é o próprio Dalai Lama, que é um
proponente evidente da perspectiva rimê, e que, talvez por humildade, ou mesmo
para não aumentar a encrenca com os setores mais dogmáticos de sua própria
tradição, não usa o termo para se autodescrever.
Como a Gelug (a tradição em que o Dalai Lama é
principalmente treinado) foi a tradição dominante no Tibete por 400 anos antes
da invasão, “rimê” muitas vezes significou “não-gelug”, principalmente no
âmbito político. Uma vez que a tradição Gelug não precisava de preservação, e
certos setores sectários justamente dentro da tradição Gelug efetuavam, por
vezes, a supressão de outras tradições, os mestres rimê muitas vezes estavam em
choque com o establishment. Nesse caso, o Dalai Lama se descrever como rimê (coisa que ele
efetivamente é), poderia ser visto como uma afronta sectária para com sua
própria tradição. Pouca gente é realmente capaz de entender o jogo do
sectarismo e não sectarismo numa tradição tão intrincada como o Budismo
Tibetano!
Quem conhece bem a história sabe a coragem que Sua
Santidade teve e continua a ter em lidar com os setores mais sectários da
própria tradição em que foi treinado, e sua grande abertura para com aspectos
de todas as tradições budistas, tibetanas ou não, outras tradições religiosas e
mesmo perspectivas seculares e modernas. Só quem entende o contexto do
sectarismo, racismo e xenofobia tão comuns a professores budistas asiáticos não
tão realizados consegue vislumbrar um pouco mais a grandiosidade de Sua
Santidade. (Nota: a própria expressão “Sua Santidade” veio daquela comparação
injusta com o Papa, mas ao que parece, acabou sendo cooptada e é hoje
universalmente aceita.)
Então, se dizer “não sectário” é parecido com se
dizer um Buda, ou um mestre realizado. Se você já realizou a não dissipação
total, então você está livre para lidar com todas as tradições – com tudo que
apareça. É alguém que não tem preconceitos, e que se engaja com as tradições
para benefício dos seres, e não para benefício próprio. Ser não sectário é
uma aspiração: e não significa dissipadamente seguir qualquer coisa, ou achar
que tudo é positivo. Significa ser criterioso e proteger as tradições positivas
que são ameaçadas pelo sectarismo.
Porém, para quem ainda vê que tem obstáculos e
dificuldades, o melhor é se focar em uns poucos métodos que o professor nos
tenha receitado – sem desenvolver uma atitude sectária, mas também sem se
dissipar se entregando a todo método que aparece, só porque aparece. Nesse
caso, não sectário significa apenas “respeito”: estou focado aqui na minha
coisa, nenhum problema com a sua, mas agora não estou podendo me engajar com
outra tradição, obrigado.
De todo modo, para alguém que deseje tomar refúgio
nas Três Joias, isto é, se comprometer com o caminho budista – seja de que
escola for –, algumas reflexões preliminares são importantes. Antes de ouvir
ensinamentos, normalmente recebemos ensinamentos sobre
como ouvir ensinamentos. O budismo, na grande maioria
de suas formas, é uma tradição altamente sistematizada, uma verdadeira
engenharia espiritual. (E mesmo nas suas formas aparentemente espontâneas, como
o zen, normalmente essa espontaneidade implica uma maestria de um método e
convívio com professores que leva a formação de um hábito peculiar de
relacionamento com o mundo e os ensinamentos, que é sofisticado e nada óbvio.
No zen se fala em “manter mente de principiante”, e essa também é uma prática
de “como ouvir ensinamentos”.)
Um dos primeiros ensinamentos que ouvimos, ou que
devemos ouvir, ao começarmos a nos interessar pelo darma, é o que é chamado de
“três defeitos do pote”. Uma versão bastante tradicional pode ser encontrada em As Palavras do Meu Professor Perfeito, de Patrul Rinpoche, editado no Brasil pela Editora Makara.
Muitos outros textos clássicos mencionam os defeitos do pote, mas este é um
texto clássico fácil de encontrar em português, e que sem dúvida deve ser lido
por todos os interessados em tornar a prática budista a prioridade maior em
suas vidas.
A ideia aqui é, numa metáfora comum à Índia
Clássica, de que os ensinamentos são como um néctar, uma substância preciosa,
refinada e pura. Nós, interessados nos ensinamentos, somos aspirantes a
recipientes desse néctar. Da mesma forma que não comemos em qualquer superfície
que se assemelhe a um prato, mas cuidadosamente buscamos louças ostensivamente
limpas – nos recusando a usar um copo em que claramente vemos uma impressão
digital, ou uma tigela em que haja um fio de cabelo –, da mesma forma pensamos
em como podemos nos tornar os melhores recipientes possíveis para o que o Buda
ensinou.
E aqui exponho um pouco meu exemplo pessoal, de
como eu mesmo encarei esses ensinamentos, quando primeiro os ouvi e li. Minha
atitude foi claramente arrogante: vamos direto ao que interessa! Ora,
ensinamentos sobre ouvir ensinamentos, que coisa mais maçante!
Na terceira vez que ouvi sobre os defeitos do pote
eu já não aguentava mais. E assim, levei talvez três ou quatro anos para
reconhecer a pequena possibilidade de que talvez eu mesmo apresentasse “defeito
no pote” – talvez, vez que outra, muito raramente.
E isso diretamente tem a ver com o primeiro defeito
no pote, que é o pote cheio. Não entra nada. Você já sabe. Não tem novidade
nenhuma.
Tudo que você está lendo é algo que você já leu de
outra forma, algo que já está cansado de saber. E mesmo que você finja uma
atitude de que agora, finalmente está aprendendo algo, porque finalmente está
prestando atenção, na verdade não há desafio nenhum a seus padrões e hábitos.
Você já sabe que nirvana é uma espécie de céu, e que o Dalai Lama é algo
parecido com o Papa, e, portanto, se alguém diz que há nuança, há diferença,
você descarta, porque, afinal de contas, o que vale é que você já tem uma
versão das coisas que “sempre funcionou”, e que, aparentemente, vai seguir
“funcionando”.
Claro que todas as tradições dizem a mesma coisa,
dizer o oposto seria voltar às cruzadas! O que esse autor está dizendo é
provavelmente o mesmo que eu já sei sobre isso, ele só está falando de um jeito
mais complicado – e o que parecer meio difícil de entender, eu descarto.
Simples assim.
Só que não.
Até esperamos que o darma nos desafie, e alguns
professores projetam o darma para essa expectativa ou necessidade moderna – mas
o darma, como foi ensinado na sua forma clássica, não é assim claramente
desafiador. O darma pode, muitas vezes, parecer simplesmente chato – como uma
catequese que você precisou fazer porque, enfim, era o que todo mundo fazia na
sua família. Bom, isso pode também ser desafiador, mas não no sentido de
desafiador que esperamos numa autoajuda que nos dá tapas na cara e provoca
epifanias.
Muitas vezes estamos acostumados a receber o darma
embalado dessa forma, prontinho para lidar com nosso senso de entretenimento, e
nossa ideia de terapia de choque, ou algo assim. Puxa, cara, que profundo isso…
Porém, precisamos amadurecer e desenvolver uma abertura para o darma como quer
que ele se apresente: particularmente na sua vestimenta clássica, sistemática,
nada divertida. Uma hora passa a lua de mel, e o darma se torna uma relação
como qualquer outra. Sustentar a inspiração e o élan pelo darma faz parte da
prática, não é algo sempre natural: vamos encontrar altos e baixos, e vamos ficar
entediados com o darma.
Evitar o pote cheio quando já se ouviu o darma por
alguns anos pode ser difícil. Acabamos não ouvindo o ensinamento, mas o
comparando com outro. Algumas vezes não estamos ouvindo, mas achando bonito o
jeito com que o professor coloca as coisas. Ou feio, tanto faz. Você acaba
gostando dos ensinamentos que são apresentados de acordo com suas inclinações,
que justificam sua visão de mundo, e como você gostaria que o darma fosse
ensinado. E há professores que, como garçons, atendem cada pequeno desejo de
sua plateia. Não que não haja mérito também nisso, mas tradicionalmente nunca
foi assim. E é bom superar essa perspectiva mimada, porque isso não leva muito
longe no darma, de todo modo.
Não, Lama, por favor, não de novo o mesmo exemplo e
a mesma história! De novo esse coelho com chifres ou essa lua dupla? Mais uma
vez a gravata, o helicóptero, ou aquela sandália de couro? De novo essa coisa
de “shenpa”? Estou de saco cheio dessa palavra! O senhor precisa mesmo renovar
o seu número, as piadas estão velhas!
Algumas pessoas com tigela cheia simplesmente
desistem de ouvir. Embora nós muitas vezes não nos importemos de cair sempre
nas mesmas armadilhas em termos das emoções aflitivas, de gerar hábitos
extremamente nefastos, ou ouvir as mesmas velhas piadas sem graça numa série
boba, aparentemente ouvir o darma logo se torna cansativo. Isso se deve ao fato
de que nossa tendência para dissipação é muito forte, e ela se reúne com nossa
arrogância e falta de inspiração.
Caso pratiquemos o mahayana, se nos comprometemos
com a compaixão e responsabilidade universal, não ouvimos ensinamentos porque
achamos legal, ou porque pode ser bom para nós. Os ouvimos para beneficiar os
outros. Sem essa perspectiva, perdemos inspiração, não somos capazes de devoção
e sentimos tédio. Em outras palavras, se temos essas experiências, isso se deve
ao fato de que estamos seguindo nossas tendências habituais obscurecidas, e não
revelando nossa verdadeira natureza cheia de qualidades.
As histórias sobre o sofrimento que grandes mestres
passaram para ouvir um verso de darma são bem inspiradoras – ou até
desesperadoras, quando consideramos a forma displicente com que tratamos os
ensinamentos. Eu poderia dizer que não sairia hoje na chuva para atravessar a
rua para ouvir um grande mestre, mas o fato é que muito pior: abro um link de
ensinamento em áudio numa aba e ali o esqueço, acabo nunca ouvindo.
E as pessoas que choramingam sobre o custo de
eventos do darma? Cada uma delas agora com um computador ou celular em mãos que
paga meia dúzia de dias em retiro e uma passagem de avião – em um centro caro!
No fundo, é uma questão de prioridades: não vemos necessidade no darma. Se
víssemos necessidade, dávamos um jeito. Isso também é pote cheio.
Mas então estamos bem alimentados, numa sala
silenciosa, bem ventilada, com a temperatura agradável, com um grande
professor. Conseguimos manter uma boa postura, não sentimos dor mesmo sentados
por várias horas. Entendemos, digamos, os dois idiomas em que a palestra está
sendo concedida – original e tradução. Estamos interessados e atentos.
Conseguimos ouvir e refletir sobre o que está sendo dito, e ficamos inspirados
a ouvir mais. Parece que tudo correu bem, não é mesmo?
Algumas pessoas lerão esse parágrafo e salivarão
perante um mérito tão grande, que elas nunca vivenciaram. A maioria de nós
sofre o tempo todo com esses detalhes, ao ouvir o darma.
Mas mesmo nesse caso de mérito quase perfeito, é
interessante avaliar o pote cheio, e os outros defeitos do pote. Temos abertura
verdadeira para o que está sendo dito, ou apenas ouvimos por respeito?
Precisamos refletir sobre os sofrimentos do samsara e os objetivos do darma de
forma que sintamos o darma como uma necessidade. Não basta estar presente.
O segundo defeito do pote é o pote furado ou
rachado.
Este defeito do pote não tem especificamente muito
a ver com o problema do universalismo, ao contrário dos dois outros. A única
relação possível com a modernidade é que tendemos a tratar o darma de forma
frívola porque a cultura nos leva a tratar tudo superficialmente.
Neste item eu também demorei algum tempo para
sentir o chapéu servir. O problema é que eu aparentemente realmente tenho, num
bom dia, bastante atenção e memória. Muitas vezes eu conversava com pessoas
logo após os ensinamentos e ficava julgando “mas essa pessoa não estava na
mesma sala que eu, não é possível!”
É simplesmente inacreditável o que as pessoas não
ouvem.
Não é só o caso da pessoa não se portar de acordo
com os ensinamentos. Muitas vezes detalhes interessantes e até mesmo piadas
eram completamente perdidos. Ou quando você encontra um praticante que conhece
há mais de 10 anos, e que ouviu vários dos mesmos ensinamentos com você, e essa
pessoa não sabe listar as quatro qualidades incomensuráveis, ou as seis
perfeições. Então você pensa: bom, esse negócio de pote rachado, pelo menos
comparativamente, não é comigo.
Com o passar dos anos, no entanto, encontrei o pote
rachado em mim, de forma bastante amarga. Mesmo que eu tenha ouvido tantos
ensinamentos – e nem entremos na leitura – muitos deles claramente é como se
tivessem entrado por um ouvido e saído pelo outro. É claro que eu sei listar as
seis perfeições – em sânscrito e outras línguas! E discutir as opções de
tradução… –, e me lembro dos exemplos em alguns dos livros, e das histórias
comuns contadas por alguns professores ao ensinar as perfeições, e sei trechos
do Sutra do Diamante de cor. Posso importunar uma pessoa por horas a fio com
referências a generosidade, três esferas, etimologia de “paramita”, oferendas
de água no altar, o Jataka em que o Buda oferece o próprio corpo a uma tigresa
– mas a minha própria prática de generosidade é escassa, intermitente,
limitada, desajeitada, e assim por diante.
Eu me coço para dar cinco reais para um lama ao
final de um ensinamento, e os mendigos das ruas que eu frequento já até
desistiram de mim. Mas nem entremos nessa generosidade padrão, de dar esmolas e
fazer oferendas: acho as pessoas em geral chatas, e me custa dar atenção, ou
sequer conviver perto de outra pessoa. Misantropia pouca é bobagem.
E então, embora eu ouça, leia e até fale sobre
generosidade, ao que parece, eu não fiz muito esforço para me aplicar em
generosidade. Ouço vez após vez, mas não cola, não fica comigo. Eu ouço, ao ponto
de conseguir repetir, mas não ouço ao ponto de integrar.
Aí você lê isso e pensa que o autor está sendo
humilde, ou falso humilde, ou exagerando. Mas o fato é que isso se aplica a
todos nós. As reflexões sobre os defeitos do pote não servem para a pessoa dizer: “puxa, agora eu
cheguei num ponto em que esse ensinamento não é mais necessário”. Eu tenho
mesmo boa memória, mas integrar ensinamentos é outra coisa. E de forma alguma
eu sou o pior praticante que conheço: o fato é que todos nós temos uma
tendência a não levar os ensinamentos a sério.
Às vezes até levamos a sério, de um jeito teatral
de levar a sério: ah, agora isso sim… epifania total! É exatamente isso:
preciso postar no Facebook. É mais algo de querer esfregar na cara dos outros
do que “eu realmente preciso disso”. Nem que não seja agressivo, e pareça
compaixão.
O darma é feito de repetição porque temos hábitos
contraproducentes, e parte da prática é gerar hábitos produtivos ou virtuosos
para substituir esses hábitos ruins. Então naturalmente precisamos ouvir várias
vezes sobre os defeitos do pote, e assim, quem sabe, um dia reconhecemos o tal
do pote rachado. Para a maioria das pessoas creio que é bem evidente até. São
três elementos: ouvir, lembrar e integrar. Lembrar tem vários sub-elementos,
que a pessoa pode consultar nas obras de referência. Por exemplo, é preciso
lembrar as palavras e os sentidos, e na ordem certa. Não adianta lembrar só os
sentidos, ou só as palavras. Tendo ouvido, e lembrado tudo, aí é possível
integrar.
Quando você ouvir um professor explicar sobre o
pote rachado, você pode anotar, mas é importante que você volte a essas
anotações – e aprenda a integrar o que ouviu na prática formal e na prática
cotidiana. Aprender a aprender já é um passo bem importante – mas então você
está basicamente no início. (Ajuda lembrar que os detalhes todos estão no Palavras do Meu Professor Perfeito.)
O fato é que os três potes se misturam. Pote cheio
é, em certo sentido, o mesmo que pote rachado – que é o mesmo que o terceiro
pote, o pote envenenado. Basicamente, não estamos prontos para receber o darma.
Mas a boa notícia é que o darma está pronto para lidar com pessoas como nós,
que não estão prontas: afinal de contas, todo mundo é assim, ninguém nasce um
recipiente perfeito e imaculado para os ensinamentos mais sofisticados do Buda.
Precisamos passar por um longo e árduo processo de depuração para
desenvolvermos a abertura, a acuidade mental e a não distorção necessárias para
ouvir os ensinamentos que libertam. Então além da boa notícia do darma ter sido
feito considerando que somos assim, o fato é que podemos depurar e nos tornar
recipientes melhores. São duas boas notícias, em meio ao desafio dos três
defeitos do pote.
Ouvir no budismo é muito importante. Ler não é a
mesma coisa. Quando você ouve, há um aspecto de energia que não está presente
na palavra impressa. Quando recebemos uma transmissão oral do darma,
normalmente alguém nos lê em voz alta o texto na língua original, e então
efetua explicações e elaborações pessoais em torno daquele texto original. A
transmissão é das palavras, dos sentidos, da integração e exemplo pessoal, e da
linhagem, desde o Buda. Todos estes aspectos precisam estar presentes na
transmissão do darma.
'As Palavras
do Meu Professor Perfeito', de Patrul Rinpoche, editado no Brasil
pela Editora Makara.
O pote envenenado é o que mais diretamente tem a
ver com essa questão do universalismo. O fato é que, quando misturamos nossas
ideias, ou as ideias de outros, com os ensinamentos do Buda, o resultado é que
os ensinamentos se tornam veneno.
O exemplo clássico é que, se há uma única gota de
veneno em um grande recipiente, ao colocarmos muitos litros de leite puro nesse
recipiente, não podemos mais chamar o que está ali de leite: é só veneno. Todo
aquele leite virou veneno. Depois que misturamos, é só veneno.
O ensinamento tradicional não se refere diretamente
a outras tradições. Ele se refere a nossos próprios entendimentos errôneos. Ao
misturarmos nossas ideias equivocadas com o darma, o darma deixa de ser darma,
e se transforma em apenas ideias equivocadas – que não levam ninguém à
liberação.
No entanto, é preciso dizer que nossas ideias
equivocadas não surgem do nada. Elas são uma mistura de nossas aflições mentais
com conceitos, equivocados por si só ou não, presentes na cultura – inclusive
em outras tradições.
Na nossa cultura atual não é muito político afirmar
que outras tradições possuem ideias equivocadas, mas o Darma do Buda e até
mesmo a filosofia ocidental tradicional, reconhecem isso muito claramente.
Religiões que praticam sacrifício humano não podem ser desculpadas por
relativismo antropológico, como também práticas de mutilação genital não têm
desculpa alguma. Da mesma forma que as pessoas podem estar erradas, e
frequentemente estão, culturas e tradições também podem estar erradas. Esses
podem parecer exemplos extremos, mas uma ideologia qualquer que considere
positiva a ideia de vingança, ou regozijo na vingança, é, de acordo com o Darma
do Buda, errada quanto a isso. É bastante comum em nossa cultura as pessoas não
verem problema no regozijo com a vingança: a mureta no seu Facebook deve estar
cheia de “bandido bom é bandido morto”, e coisas assim. Mas, se a pessoa quer
se envolver com o budismo, é interessante que ela examine de forma crítica essa
tendência. Não é desculpa dizer “ah, mas os Vikings e os Samurais e o pessoal
no Game of Thrones praticam vingança, e essas são tradições tão válidas quanto
quaisquer outras, então está ok”. Não, tradições e culturas inteiras também
podem estar erradas com relação a certas coisas, o relativismo antropológico
não se sustenta.
Evidentemente, precisamos tomar o maior cuidado
para não estar julgando o que é uma mera diferença como um erro – mas a
possibilidade de erro precisa ser reconhecida, e em nossa cultura, nem mesmo
isso é muitas vezes “permitido”. Estamos tão escaldados com as perseguições
religiosas e com a intolerância, que ainda assolam muito nosso mundo, que
qualquer visão não relativista de mundo parece violenta. Não é preciso haver
violência. A diferença existe, e erros de todos os tipos são possíveis por
todos os lados. É preciso ser capaz de conviver alegremente com a diferença, e
ao mesmo tempo tratar todos os erros da mesma forma equânime.
Esses são exemplos do tipo de ideias errôneas que
existem na cultura ou em outras tradições – ou até mesmo no contexto familiar,
passando pelas gerações sucessivas exatamente como se fora uma doença genética.
O que misturamos com o darma ao ouvir, na questão do pote envenenado, pode ser
bem mais sutil. Muitas vezes são tendências interpretativas ou até questões terminológicas
que usamos displicentemente e que distorcem o darma irrevogavelmente.
Geralmente somos cegos para essas coisas, porque afinal de contas elas formam
nossa própria estrutura de pensamento. Elas têm nomes filosóficos bonitos, mas
não são fáceis de entender – nomes como realismo, teleologia, essencialismo, e
assim por diante. Operamos automaticamente em termos dessas doutrinas não
examinadas o tempo todo, e seguimos nos acreditamos muito céticos e isentos.
Quando misturamos o darma com essas estruturas
errôneas, é bem difícil lidar com o produto disso. Se você adiciona mais darma,
mais o darma fica sujo. É uma situação muito delicada e perigosa. Mas todo
mundo, em algum sentido, acaba sujando o darma com suas prerrogativas, e todo
mundo acaba precisando “resetar” seu pote, limpar para valer as estruturas
cognitivas viciadas através das práticas formais, e tentar ouvir de novo, dessa
vez sem distorção.
Mas não só de sutilezas vive a distorção e o
envenenamento do darma. Há coisas bem grosseiras, como quando misturamos
conceitos de reencarnação próprios do espiritismo com as ideias de renascimento
no budismo, ou quando pensamos o mundo em termos de um plano divino, ou coisas
como a força do pensamento positivo: nada disso é budismo, e de fato, pensar assim
não ajuda nossa prática budista.
Então, há vários tipos de erro. O acerto é único,
ou pelo menos os acertos são poucos, mas os erros possíveis são infinitos.
Há prerrogativas éticas universais, como a proteção
da vida. Isso independe se a pessoa é budista ou não, ou mesmo se é religiosa
ou secular. Uma pessoa que desconsidere o valor da vida, sua e de outros seres,
é um problema para todos os seres vivos.
Sua Santidade o Dalai Lama acredita que a ética
pode ser estabelecida totalmente numa perspectiva secular. Não é necessário ser
religioso para ser ético.
Porém, há prerrogativas éticas que se aplicam a
pessoas que detém certas crenças ou visões de mundo, e que talvez não se
apliquem a outros. E além de prerrogativas éticas, há questões de domínio
prático. Então, se a pessoa pratica o budismo, é coerente, é não dissipatório,
que ela leve certas prerrogativas de treinamento da mente a sério – mas ela não
pode exigir os mesmos padrões de pessoas que não se comprometeram com o
ensinamento. Na verdade, ela não pode exigir isso de ninguém – mas ela pode, e
talvez deva, exigir isso de si mesma. Em outras palavras, algo pode ser errado
apenas para ela, de acordo com o treinamento que ela especificou para si mesma.
Para alguém que esteja num retiro de meditação, por
exemplo, é inadequado jogar videogame ou cantar e dançar. No entanto, o que
acontece muitas vezes é que, ao mesmo tempo que projetamos sobre os outros
nossas prerrogativas budistas – achando que eles devam se comportar de uma
forma ou de outra – ao mesmo tempo somos lenientes para com nós mesmos, que
supostamente tomamos um compromisso que nos obriga a sermos muito criteriosos
com relação ao que fazemos e pensamos. Pode ser ok para aquela outra pessoa
pensar ou agir daquele jeito, mas precisamos sim é voltar nosso olhar para nós
mesmos e ver se não estamos nos justificando, ou usando desculpas, ou evitando
critérios, ao examinar o que nós mesmos fazemos, e como nós mesmos pensamos.
Isso tudo tem a ver com “não misturar o veneno”. Às
vezes não é dramático como um veneno, é só um sabor ruim, ou um sabor que não
combina. Não é algo inerentemente errado: é algo que, em dada circunstância e,
sob certas condições, não é completamente ideal. Se pudermos evitar qualquer
impureza, tanto melhor. Afinal de contas, já temos obstáculos suficientes sem
diluir o darma puro, que é nossa única chance – se entendemos as coisas com a
visão e as prerrogativas budistas, é claro.
E, sem dúvida, se pudermos examinar nossa própria
mente e encontrar esses conceitos habituais ocultos que projetamos e que usamos
como desculpas, tanto melhor para nossa prática. Quando estivermos bastante
livres de certas projeções, o darma soará diferente para nós. Finalmente o
darma será darma, e efetuará sua atividade de darma em nossa mente, produzindo
liberação, e não mais confusão.
Quando não ignoramos os ensinamentos, os encararmos
frivolamente, ou os misturarmos com nossas prerrogativas, então encontraremos o
método infalível do Buda. E a cada vez que encontramos o darma do Buda, devemos
verificar novamente se estamos ouvindo com boa motivação e a atitude correta em
corpo, fala e mente – e se estamos livres dos defeitos do pote.
Com relação ao universalismo, precisamos entender
que a diferença é real e uma riqueza. Dizer que não há diferença pode soar
bonito, mas não é diferente de, no fundo, apenas fagocitar o outro – e que tem
o resultado adicional nefasto de você mesmo não obter os entendimentos de que talvez
tanto precise.
No bufê das tradições espirituais, que
saibamos comer bem, sem produzir uma futura dor de barriga. Que escolhamos bem,
sem misturar sabores que ficam desagradáveis combinados. Que não batamos tudo
no liquidificador, mas saibamos apreciar a textura da diferença. Que saibamos o
que nos alimenta e faz bem para nós, e que não comamos por impulso, apenas por
que algo salta aos olhos. Que apreciemos uma deliciosa refeição completa e
balanceada, em que todos os aspectos presentes enriquecem uns aos outros. E que
evitemos completamente as comidas que nos fazem mal, e os bufês que não seguem
regulações sanitárias.
Que não sejamos glutões espirituais,
mas bon-vivants que conhecem o vinho que combina bem com o queijo em questão. E
ainda assim que não sejamos o chato que impõe visões culinárias sobre quem não
pediu nossa opinião, mas respeitemos até o sujeito que bebe a massa triturada
do universalismo (milk shake, batata frita e hambúrguer batidos no
liquidificador), e que pede um toque do nosso Beaujolais com Camembert fresco
na mistura. Nós sabemos bem que desperdício é misturar o darma sagrado com
esoterismo de nova era: ele não sabe. O melhor é não ser esnobe; sem nunca
deixar de saber o que é bom.
Pema Dorje é praticante budista e autor de Filosofia:
forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre
seu trabalho no site tzal.org.
Fonte:http://www.budavirtual.com.br/para-o-budismo-so-o-buda-salva/
Comentários
Postar um comentário