BUDISMO E PSICOLOGIA : OS SEIS REINOS DE RENASCIMENTO E AS DISPOSIÇÕES DA PSIQUE NA VIDA PRESENTE

Resultado de imagem para budismo e renascimentoBudismo e Psicologia: os seis reinos de renascimento e as disposições da psique na vida presente


Eu manisfestei um corpo de sonho
para o benefício de seres de sonho
imersos em sofrimento de sonho;
eu não vim e eu não vou.
Estas foram as últimas palavras atribuidas a Buda antes de morrer. Uma leitura ocidental precipitada destas palavras poderia classificar o budismo como uma religião niilista, mas, para quem mergulhar até o fim nas águas profundas dos ensinamentos de Buda, vai encontrar, justo o contrário, o significado da existência.
Introdução:
Nesse texto se descreverá os seis reinos do renascimento cíclico dos seres, como de modo geral estão descritos na doutrina budista, e, sem se ater a nenhuma escola em específico, seu objetivo será comparar a descrição dos reinos com as disposições da psique – os complexos mentais e emocionais conscientes e inconscientes dos indivíduos, de acordo a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.
Embora o texto não tenha a intenção de ser um ensinamento budista, e nem um tratado de PA, tenciona trazer a sabedoria do budismo para nos auxiliar na compreensão de nossas vidas, de como em nossos relacionamentos dispomos dos nossos estados emocionais interiores e de como eles são determinantes ao próprio modo de nos relacionar – conosco mesmos, inclusive, – produzindo felicidade ou infelicidade a nós e aos outros seres.
Uma última advertência à leitura do texto, se o que se propõe é transpor os reinos do renascimento a uma interpretação psicológica, todos os seis reinos possíveis devem ser entendidos como metafóricos, todos servem como metáforas para a vida presente que temos – a única possível para a existência de uma psique individual –, sem nos referir a uma reencarnação futura ou passada, mas de que já vivemos todas as vidas aqui, agora, e colhemos os frutos imediatamente aqui e agora, de nossa paz ou agonia interior. Assim é que dispomos a nossa psique no mundo, considerando todas as variáveis internas e externas a que estamos sujeitos.


Os mestres budistas, a partir do próprio Buda Shakyamuni (o buda histórico Sidarta Gautama), parecem ser apaixonados por números, ou, pelo menos, muitos de seus valiosos ensinamentos se dão através de: “as quatro nobres verdades“; “o nobre caminho óctuplo”; “as seis paramitas“; “os três venenos da mente“; “os doze elos da originação dependente“; “os seis reinos de renascimento dos seres“…
O nosso interesse irá concentrar-se agora nos Seis Reinos, que, grosso modo, assim podem ser descritos:


1. O reino dos infernos: seres que experimentam raiva e ódio constantes; vivem no temor de serem agredidos e mortos pelos outros seres; eles próprios agressores, ferem e matam outros seres.
2. O reino dos seres famintos: seres que sentem fome e sede constantes, e, sempre cobiçando algo que nunca conseguem obter, vivem num sentimento de miséria sem cura.
3. O reino animal: constam deste reino todos os animais, desde os domésticos aos selvagens, todos entretanto incapazes de obedecer outra coisa que não aos próprios instintos; do nascimento a morte, quando não sofrem ao se verem escravizados por outros seres, são dedicados integralmente à subsistência do corpo.
4. O reino humano: os maiores sofrimentos do homem são o nascimento, a doença, a velhice e a morte; isso em meio ao apego, no temor de perder os seres que amam e os bens que possuem, ou de não conseguirem obter o afeto e bens de que necessitam ou julgam necessitar.
5. O reino dos semideuses: são seres guerreiros de poderes extraordinários, contudo, aspiram um dia tornarem-se deuses, de quem invejam as qualidades maiores de perfeição, por isso tramam incessantemente contra estes para alçar até a plenitude dos deuses.
6. O reino dos deuses: seres benfazejos que experimentam todos os níveis de felicidade possível, desde o estado mais sutil de beatitude ao êxtase; são seres extremamente longevos, sem serem contudo imortais, onde o inevitável renascimento em algum reino inferior – pela extinção do carma positivo, é a maior causa de sofrimento.


O conjunto desses seis reinos forma o samsara budista, que não é o equivalente ao inferno cristão, propriamente, a não ser pela descrição dos seres infernais e famintos.
A essência do samsara é a impermanência,  seus reinos de renascimento são, portanto, todos, de natureza cíclica, de sofrimentos passageiros e de alegrias também passageiras, como podemos observar pelas alegorias clássicas da Roda da Vida.


A Roda da Vida: a figura assustadora que segura a roda é Maharaja, o Senhor do Destino. Equivalente ao demônio Yama da mitologia hindu, e, no ocidente, com as Deusas Moiras gregas e as Três Parcas romanas.


Na experiência do samsara tudo é, então, impermanência, mas não apenas as coisas e as pessoas são transitórias, a própria experiência é transitória, entre experimentarmos o mesmo objeto de formas diferentes, conforme dado momento se encontre a nossa disposição interior. Isso tanto é verdade quanto pelo senso comum um copo com água pela metade, do ponto de vista de um olhar otimista, está “quase” cheio, e do olhar pessimista “quase” vazio.
Assim, sensivelmente, o olhar faz parte da experiência e modula a qualidade dos seres que participam daquela experiência. Essa é uma realidade que parece valer a qualquer mundo que possamos conceber, dentro do samsara. Inclusive para a Ciência, que se propõe a ser uma leitura objetiva da realidade, mas é sempre de um ponto de vista – nunca isento de subjetividade – que se observa a realidade, e é da própria observação que se a constrói. Até a nível quântico a importância do observador na definição do observado parece se comprovar, se nos lembrarmos e nos remetermos ao experimento da Física Quântica da onda e partícula. Em nosso mundo mundano, também, podemos pegar qualquer exemplo, como um simples cão, uma raquete comum e uma partida de futebol: para um ser que está nos infernos o cão pode ser treinado para a luta e usado para intimidar e agredir outros seres, a raquete será uma arma, assim como a partida de futebol, e os eventos públicos, em geral, são lugares para o embate contra adversários; no outro extremo, para os deuses, com algum humor, podemos imaginar o cão sendo a companhia de Anúbis e a raquete e o futebol sendo instrumentos e a própria arte de  se mover uma bola.
  • Nessa altura eu pergunto: em que mundo nós vivemos?
  • Ou essa pergunta deveria ser feita menos no coletivo e mais no pessoal: em que mundo você vive?
Seja qual for a sua resposta, uma vida de plenitude existencial, bem vivida, conterá tantos e tão variados acontecimentos que, por si só, são capazes de proporcionar experiências de todos os seis reinos. E é por isso que nós podemos compreender todos os seis reinos, daqui, de onde estamos, sem precisar recordarmos de nenhuma vida passada e de esperar para renascer numa futura. No entanto, será sempre com algum dos reinos que vamos nos identificar e focar como sendo o nosso referente. E será por esse, que tomamos como o nosso referente – não esquecendo da natureza cíclica do samsara –, que vamos filtrar as nossas experiências e dar o nosso colorido idiossincrático para a existência.
  • Nesse sentido, renovo a pergunta: em qual reino ou com quais cores você pinta a sua vida?
Seja qual for a sua resposta definitiva, reflita como todas as cores do samsara são impermanentes…


Algumas escolas contam cinco reinos, ao invés de seis, consideram que, no reino dos semideuses, parte dele pertence ao dos seres famintos e outra parte aos próprios deuses.


Os seis reinos parecem sustentar uma escala hierárquica do pior para o melhor, mas, para embaralhar esse aspecto de dualidade, próprio dos seres imersos em samsara, é importante refletir igualmente que, dos seis reinos, o mais propício, ou o único verdadeiramente propício à prática do Dharma (os preceitos budistas), é o reino humano. Visto que nos demais os seres estão tão ocupados com a luta aguerrida pela sobrevivência ou obscurecidos pela ignorância – que o sofrimento e a felicidade extremadas proporcionam, que não dispõem de tempo, vontade ou paz de espírito para a prática espiritual.
A maior lição que o budismo pode nos ensinar a partir dos seus seis reinos de renascimento é de que já os experimentamos todos aqui, em nossas vidas presentes, em nosso mundo e em nossos relacionamentos, da maneira como nós nos construímos mentalmente, em princípio. É em nosso interior que guardamos as chaves de como reagimos aos outros . Carmicamente para o budismo e subjetivamente para a psicologia, não faz diferença, pois é para ambos os saberes de onde, desde dentro, vamos semeando nossa vida futura.
Não é questão de ser otimista sem motivos reais, usando óculos cor-de-rosa para examinar a realidade do mundo, ou de simplificar as nossas relações à questões subjetivas,  reduzindo as tensões sociais que nos discriminam à questão psicológica, mas de enxergar o quanto essa disposição interna em nós é importante na equação do mundo, exatamente do modo como nós temos o mundo, ele é o fruto de como nós o estamos construindo.


Buda flutua no céu e aponta a lua cheia, o que significa a saída do ciclo de renascimentos e o caminho para a liberação.


Daí para construir ambientes melhores, precisamos gerar méritos – o bom carma para o budismo, para assim acender a níveis mais elevados. No entanto, por mais benigno que tal atitude possa nos conduzir a encarnar em mundos melhores, o que equivale dizer, construir um ambiente de paz no aqui e agora conturbado, esse “tempo pós-moderno de degenerescência relativista” que vivemos, o objetivo não á atingir o reino dos deuses para descansar sob os louros da vitória. Pois, a essência desses reinos é como foi dito, de que todos eles são de natureza cíclica, e estar dentro deles é estar dentro da Roda da Vida, dentro do mundo samsárico, nem mais, nem menos. O objetivo do budismo é mais profundo, reside além de samsara e da Roda da Vida, e, o que deveria ser o de todos nós, é a liberação desse ciclo. A iluminação budista está então para além destes reinos, no reconhecimento de que a nossa natureza verdadeira é transcendente a tudo o que é impermanente, é a natureza primordial dos budas.
Toda a luta por acender a um nível mais elevado, se não é vã, será, ao longo do tempo, pela própria impermanência. Ainda mais vã é a luta se for exclusivamente para nós que almejamos tal meta, por orgulho ou desejo de um eu que deseja ser glorificado num “eu”, que já pressupõe um ser em separado dos demais, um eu que vive na ignorância da natureza interconectada de todos os seres e, portanto, distante da verdadeira natureza de buda. Tudo o que não for de natureza primordial, sobe para depois cair, e quando cai logo mais levanta, observar esse ciclo com a sabedoria primordial é livrar-se do renascimento em ignorância, o que deveria ser a nossa meta.


O mantra de seis sílabas do Bodisatva da compaixão: Avalokiteshvara. OM MANI PADME HUM. OM fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos deuses; MA fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos semideuses; NI fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino humano; PAD fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino animal; ME fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos seres famintos; HUM fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino do inferno.


  • Agora a questão, isso somente seria possível através de meditação, como prega a doutrina budista?
  • E Jesus que nunca meditou e não era budista?
  • E Krishnamurti que meditou sem a técnica e os preceitos budistas?
  • E os sufis que dançam?
  • E se a natureza primordial é o arquétipo vivo, incognoscível para Jung, de onde incessante tudo se irradia, como vamos travar contato com ela, a não ser através de suas representações, como prega a própria teoria dos arquétipos de Jung?

Encerro com essas perguntas. São minhas as perguntas e são minhas as dúvidas, profundas e sinceras. Elas – as perguntas – estão no meio do meu caminho e aqui eu as coloco para reverberá-las, na esperança de um dia poder respondê-las, com sinceridade. Não para encontrar respostas definitivas a elas, mas sim novas perguntas, mais profundas do que estas, que brotarão das respostas que puder dar.
Eu não espero por respostas definitivas porque reconheço que a natureza em que estou vivendo é a natureza do samsara, que ilusiona seus mundos fixos, mas, tudo o que o mundo não é, é fixo.
Se alguém me acompanhou até aqui, gostou do que foi dito e entendeu, prometo voltar outra hora, sem tempo marcado, mas voltar para contar uma história, de um homem comum, em nada especial, uma história simples e maravilhosa, que não é minha, é uma das histórias de Buda. Ali ele acena uma resposta de como podemos nos livrar dessa roda – que não é a roda da mandala dos budas –, encontrando a nossa verdadeira natureza livre.
Assim, esse texto vai encerrar-se aqui, com uma promessa e sem nenhuma conclusão, porque estou no meio do meu caminho e não poderia ser de outra forma.
Bem, para não ficar completamente insatisfatório, concluo com uma poesia que fiz na intenção de não ser engolida por Maharaja, pensando nisso tudo, e que foi escrito nesse texto.
Sim. A poesia. O mais próximo da realidade arquetípica que chego tem sido através da poesia, e isso me faz relembrar da advetência do grande poeta gaúcho, mágico e herói das palavras, Mario Quintana, que ao que me consta nunca se iludiu com Maharaja. “Cuidado! A poesia não se entrega a quem a define.”


Bardo Thodol

Eu estou envelhecendo

Eu estou morrendo

Já não tenho paciência para escutar os formuladores de respostas

Sei que todas as suas respostas são falhas, incompletas, falsas

A natureza verdadeira nada explica, simplesmente existe

Verdadeira e plena do seu vazio interior

Vou dedicar os dias que me restam às perguntas

Perguntas que nascem das respostas insuficientes

As próprias perguntas insuficientes

Mas serão perguntas e não respostas

E todo o mundo formulado de explicações será miragem

E tudo será poesia…


Fonte:https://anoitan.wordpress.com/2012/05/02/budismo-e-psicologia-os-seis-reinos-de-renascimento-e-as-disposicoes-da-psique-na-vida-presente/

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