ATUAÇÃO COM COMUNIDADES TRADICIONAIS INDÍGENAS,QUILOMBOLAS,RIBEIRINHAS,DENTRE OUTRAS NO INSTITUTO CAMINHO DO MEIO
Encontro entre Maria Helena Espíndola (Griô e Quilombola) e Iracema Ga Rã Nascimento (Kujà Kaingang), durante o 108 Horas de Paz 2016-17.
Atuação com Comunidades Tradicionais
Dentre as relações positivas
que visamos fomentar, destacamos aquelas com as comunidades tradicionais do
Brasil: comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, dentre outras.
Em suas formas
tradicionais de entendimento da vida, do mundo e de sua própria existência –
uma riqueza em termos de conhecimento e cultura –, esses povos se tornam
interlocutores valiosos, com os quais temos muito a aprender. Assim, partindo
de uma relação de igualdade e de um lugar de abertura, abrimos espaço para uma
escuta profunda, construindo mais pontes entre o mundo “dos brancos” e esses
mundos que são, muitas vezes, marginalizados.
Nos eventos
educacionais e de diálogo, buscamos sempre trazer as vozes desses saberes, que
nos ajudam a deslocar nossas maneiras de pensar e enriquecer as perspectivas.
Nos últimos anos, convidamos grandes lideranças indígenas do país, de
diferentes etnias, como Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Kaká Werá, dentre
outros.
Em Viamão (RS), temos amadurecido uma aliança especial com os povos Guarani Mbya, especialmente por meio das nossas tekoá (aldeias) vizinhas, como a Tekoa Jatai’ty (Cantagalo), a Tekoa Anhetenguá (Lomba do Pinheiro) e a aldeia da Retomada Guarani em Maquiné (RS), a Tekoa Ka’aguy Porã.
Com relação a esta última, desde o princípio o ICM apoia o processo de retomada de terras da extinta Fundação de Pesquisas Agropecuárias (FEPAGRO), no município de Maquiné.

Os
Mbyá-Guarani e as bolhas de realidade
Em Maquiné-RS,
a aldeia Mbya-Guarani recebe o CEBB e fala sobre seu Movimento de Retomada
Revista Bodisatva > Ação no Mundo > Visão de Sociedade > Os Mbyá-Guarani e as bolhas de realidade
Visita à terra
Somos um grupo de 15 adultos e
seis crianças. Atravessamos por vinte minutos a mata fechada que protege a
comunidade. Mário, que primeiro nos recebe e nos guia pela floresta, nos reúne
em uma clareira e explica que vamos entrar em fila e saudar a aldeia um a um,
dizendo com ambas as mãos erguidas a palavra agujevete, uma saudação guarani. Somos recebidos por todos os homens,
mulheres e crianças da aldeia. Eles estão reunidos em sua maior construção,
feita de toras de madeira cobertas com lona. Entramos. Silêncio. Cada um de nós fala, e a cada um de nós
toda a aldeia ouve e responde. Um por um.
Sentamos. André Benitez, a
liderança da aldeia, agradece e nos pede que expliquemos o que é o centro
budista. A aldeia quer entender. José Ricardo, o Juca, explica: “Não sabemos
bem como nos conectamos com essa tradição tão distante, que veio do Tibete, mas
foi o que aconteceu. Nossa prática é a bondade. Onde moramos, nós fazemos
meditação, estudamos, rezamos. Desde que soubemos de vocês, rezamos por vocês
todos os dias, pela manhã e à noite”.
André fala em guarani,
traduzindo para a aldeia que ouve atenta. No meio da fala dele, na língua que
se sente dele, do seu povo e da terra, com seus sons guturais e estalados, tão
tristemente novos aos nossos ouvidos, reconhecia-se palavras não traduzidas:
CEBB, benefício, meditação. A palavra “opy”, que define templo ou casa de reza,
foi usada várias vezes.
A retomada Mbyá-Guarani
André Benitez recebeu o CEBB no
último 7 de abril em sua aldeia Mbyá-Guarani, em Maquiné, região da Serra do
Mar, no Rio Grande do Sul, onde 15 famílias indígenas estão fazendo seu
Movimento de Retomada.
“Estamos retomando não apenas a nossa terra, mas a nossa
cultura, nosso jeito de viver. Estamos retomando o que é nosso”. Em um resgate
do modo de vida de seus ancestrais, a aldeia não tem energia elétrica nem água
encanada, e é assim que querem seguir.
O encontro entre esta aldeia Mbyá-Guarani e o CEBB
aconteceu em um momento de tensão política para eles. Após serem denunciados
por invasão de terras estaduais, o Ministério Público do Rio Grande do Sul lhes
deu o prazo de 15 a 30 dias para que deixassem a área. Esta pertence
formalmente à extinta FEPAGRO (Fundação de Pesquisas Agropecuárias), e está
localizada em um vale coberto por mata atlântica. Apenas este clima — diferente do da aldeia do Campo Molhado, onde grande
parte deles vivia anteriormente — permite que sementes que há gerações
fazem parte da cultura e tradição dos Mbyá-Guarani
sejam cultivadas.
Helisa Canfield, doutoranda do Programa de
Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
pesquisadora da área, afirma que aquela terra também tem o sentido de manter
viva a tradição que caracteriza o povo Mbyá-Guarani (e os guarani de forma
geral): o trânsito entre diferentes territórios. A área configura um corredor
entre a região do litoral e a serra gaúcha, e há muito tempo é identificada por
esses povos como uma zona de trânsito entre diferentes aldeias.
“Dentro da cosmovisão guarani, o verbo que rege é o caminhar. O guarani
é um povo que caminha. Eles não têm essa visão de propriedade que nós temos, e
a relação com o território se dá a partir de outra lógica”, explica Helisa.
Na aldeia, explicando seu Movimento de Retomada, André falou para nós
de seu sentimento em relação ao branco, de seu encarceramento cultural.“Os juruá
(homem branco) impuseram as suas leis. Nós queremos
seguir nossas leis. Temos que cumprir regra do branco e essa é uma
dor que carregamos”.
Ampliando redes
Embora sejam conhecidos por seu silêncio e
introspecção, após a decisão do Ministério Público, os líderes da aldeia
entraram em campanha, estabelecendo diálogo com outras aldeias indígenas e
organizações sociais para que sua voz pudesse ser ouvida e sua causa deixasse
de ser invisível.
Foi assim que André Benitez esteve pela primeira vez no CEBB Caminho do
Meio, no dia 3 de abril deste ano, em um visita articulada pelo doutorando do
Programa de Antropologia da UFRGS e
militante da área, João Maurício. Ao lado do cacique Jaime, da aldeia Cantagalo
(Viamão), e da cacique Júlia, também Mbyá-Guarani, André pôde contar para o
Lama Padma Samten e praticantes do CEBB a situação judicial em que se
encontravam, falar de sua luta e daquele momento.
Para Vanessa Rosa, graduanda em Antropologia e que há mais de 15 anos
está em contato com os Mbyá-Guarani, “com a dissolução das fundações e o caos que vivemos em nível
político, os guarani, uma sociedade sem estado, viram o esperado momento de sua
autonomia chegar, começando por esta Retomada.”
A FEPAGRO, que ocupava antes a área da
Retomada em Maquiné, apesar de ser uma das mais antigas fundações de pesquisa
agropecuária da América Latina e com expansão em todo o estado, foi extinta
(com outras fundações estaduais) graças ao chamado pacote de reestruturação da
máquina pública estadual.
Visões afins
No recente encontro Budismo e Povos da Terra: Cosmovisões e Possibilidades, realizado em março no CEBB Caminho do Meio, Ailton Krenak, uma das maiores lideranças indígenas do país,
deu a real dimensão da resistência e capacidade de resiliência dos povos
indígenas, especialmente os guarani.
“Para o povo guarani, o Brasil é só um dos
países onde essa grande nação perambula, onde faz suas caminhadas, atravessando
nossos vizinhos aqui do Sul — Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia — que é nossa casa comum também. Nossos parentes que vivem
no Peru, na bacia amazônica, lá pra cima na Colômbia, Equador, todos
têm esse sentimento de que é nossa casa comum.”
“Esse sentimento dessa casa
comum — essa casa que nós podemos respirar, viver, criar nossos filhos, buscar
nosso alimento — é uma visão tão inspiradora e reconfortante, porque ela tira
da gente toda essa ansiedade que o mundo fica pressionando em nosso espírito,
em nosso pensamento, e presenteia pra nós um sentimento maravilhoso de inspirar
a graça de estar vivendo”, falou Krenak para as
cerca de cem pessoas que o ouviam no templo do CEBB Caminho do Meio.
Sentado ao lado de Krenak, neste encontro
que reuniu também outras lideranças, o Lama Padma Samten falou da atual
situação dos povos indígenas no Brasil como uma violência “incompreensível” e
que já dura 500 anos.
“Nós que compomos a população brasileira
atualmente temos a responsabilidade de no mínimo olhar com os olhos muito
claros o que acontece em meio à nossa vida aparentemente natural, normal. A
gente está vivendo uma violência já muito antiga e, ao mesmo tempo, percebemos
uma capacidade de resiliência, uma capacidade de manter um conhecimento e uma
forma de vida extraordinários. São conhecimentos não apenas no nível material,
no nível da natureza, mas na inseparatividade entre todas as dimensões, que
inclui também a dimensão espiritual”.
As bolhas de realidade
Dentro da perspectiva budista, tanto quanto
a prática do silêncio, a compreensão da coemergência é fundamental para o
caminho espiritual. Ela nos permite revelar posições de mente que geram
sofrimento para nós e para os outros e estabelecer, paulatinamente, uma visão
mais lúcida sobre a realidade. O Lama Samten tem usado a expressão “bolhas de
realidade” para elucidar esse processo, que não é apenas individual, mas
coletivo, intersubjetivo.
“Nós normalizamos uma determinada forma de vida, uma cultura estreita
baseada no capital e na propriedade como se fosse ‘a forma humana de viver’.
Mas é apenas uma bolha de realidade, um tipo de forma de vida”.
“Quando desenvolvemos esse olhar
de reconhecer a bolha, isso nos permite entender que diferentes grupos humanos
vivem em diferentes bolhas. Eu vi no filme Martírio,
de Vincent Carelli, as pessoas acusando os guarani, atacando-os pelo modo de
vida deles. Os fazendeiros são mostrados matando os guarani e dizendo: “Onde
tem índio tem atraso, os americanos cresceram e progrediram porque eles mataram
todos os índios” — essa é a visão da bolha econômica. A gente pode pensar que
eles estão enganados, mas não. Isso é um outro tipo de bolha. A gente tem que
interligar essas bolhas, e fazer com que elas conversem.”
Aspiração
Durante a visita aos Mbyá-Guarani em
Maquiné, Tiago, um jovem que está se preparando para ser um Karaí (líder
espiritual da aldeia), fala com voz forte, evidenciando o choque de bolhas de
realidade, de formas de vida, que vive seu povo:
“O que é que a gente tem que fazer na escola pública? A gente não quer
que a cultura do juruá vá para frente. Para nós, que não somos juruá, queremos
a nossa própria cultura. A aldeia é a escola”.

Tiago, aprendiz de Karaí: “não queremos escola”. Foto: Daniel
Rezinovsky
Ao final do encontro, com a aldeia inteira
ao redor, André revela sua visão em relação ao encontro CEBB – Mbyá-Guarani:
“A gente pode ter rezas diferentes. Vocês têm as suas,
nós temos as nossas. Mas no plano espiritual está tudo conectado. Está tudo
amarrado”.
Ele que sempre pede desculpas por seu português, entrelaça as mãos para
complementar o sentido da sua fala. “Para nós”, diz o Lama, “é um momento muito delicado e
profundo. Um momento de nós podermos dialogar e ajudar, através do diálogo,
através da nossa ação, que esses ensinamentos possam ser preservados, e esses
povos, nações e famílias possam ser protegidos de algum modo”.
*O CEBB faz parte de um grupo de apoio aos
Mbyá-Guarani, junto com pesquisadores e militantes da área.

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