
Budismo e as Sensações (completo)
Chamei de “Budismo e as Sensações” ao
primeiro apêndice do livro “The Art of Living” de William Hart. Na verdade ele se chama “The Importance of Vedana in the
Teaching of the Buddha”. Há mais de um ano eu o publiquei em
quatro partes. Se preferir, leia em partes a partir daqui,
mas a seguir publico integralmente a tradução que fiz do texto:
Os ensinamentos do budismo são um
sistema para desenvolver auto-conhecimento como um meio de auto-transformação.
Através da obtenção de um entendimento experimental da realidade de nossa
própria natureza, podemos eliminar as incompreensões que nos levam a agir mal e
a fazer-nos infelizes. Nós aprendemos a agir de acordo com a realidade e, desse
modo, a levar vidas produtivas, úteis e felizes.
No Sutta Satipatana, o
“discurso do estabelecimento da Atenção Plena”, o Buda apresentou um método
prático para desenvolver auto-conhecimento através da auto-observação.
Essa técnica é a meditação Vipassana.
Qualquer tentativa de observar a
verdade sobre nós mesmos imediatamente revela que isso que chamamos de “si
mesmo” tem dois aspectos: físico e psíquico, corpo e mente. Nós devemos
aprender a observar ambos. Mas como podemos realmente experimentar a realidade
do corpo e da mente? Aceitar as explicações de outros não é suficiente, nem
tampouco é dependendo de mero conhecimento intelectual. Ambos podem guiar-nos
no trabalho da auto-exploração, mas cada um de nós deve explorar e experimentar
a realidade diretamente dentro de nós mesmos.
Cada um de nós experimenta a
realidade do corpo sentindo-o, através das sensações físicas que surgem dentro
dele. Com os olhos fechados nós sabemos que temos mãos, ou qualquer outra parte
do corpo, porque podemos senti-los. Assim como um livro tem uma forma externa e
um conteúdo interno, a estrutura física tem uma realidade externa e objetiva – o corpo (kaya) – e uma
realidade interna e subjetiva – a sensação (vedana). Nós usufruimos de
um livro lendo as palavras dele, nós experimentamos o corpo tendo sensações.
Sem atenção às sensações não pode haver conhecimento direto da estrutura
física. Os dois são inseparáveis.
Similarmente, a estrutura física pode
ser analisada em forma e conteúdo: a mente (citta) e qualquer coisa que
surja na mente (dhamma) – qualquer pensamento, emoção, memória,
esperança, medo, qualquer evento mental. Como corpo e sensação não podem ser
experimentados separadamente, nós não podemos observar a mente separada do
conteúdo da mente. Mas mente e matéria também estão estreitamente
interrelacionadas. Qualquer coisa que ocorre em um se reflete no outro. Esse
foi um descobrimento-chave do Buda, de importância crucial em seus
ensinamentos. Como ele mesmo expressou:
“O que quer que surja na mente é
acompanhado por uma sensação“. [1]
Dessa forma, a observação das
sensações oferece meios de examinar a totalidade de nosso ser, tanto físico
quanto mental.
Essas quatro dimensões da realidade
são comuns a todo ser humano: Os aspectos físicos do corpo e sensações; e os
aspectos psíquicos da mente e seu conteúdo. Eles provêm as quatro divisões do Sutta
Satipatana, os quatro caminhos para o estabelecimento da Atenção Plena, os
quatro pontos-de-vista favoráveis para a observação do fenômeno humano. Se essa
investigação tem que ser completa, então todas as facetas devem ser
experimentadas. E todas as quatro podem ser experimentadas ao observar vedana.
Por essa razão o Buda especialmente
insistia na importância da atenção avedana. No Sutta Brahmajala,
um dos discursos mais importantes do budismo, ele disse:
“O iluminado se tornou livre de todos
os apegos ao ver que os apegos eram, na verdade, o surgimento e desaparecimento
das sensações, o desfrute deles, o perigo deles, o livrar-se deles”
Atenção a vedana, ele afirmava, é um pré-requisito para o
entendimento das Quatro Nobres Verdades:
“Para a pessoa que experimenta as
sensações eu mostro o caminho da compreensão do que é o sofrimento, sua origem,
seu fim, e o caminho que leva ao fim do sofrimento” [2]
O que é exatamente vedana?
O Buda a descreve de várias maneiras. Ele incluiuvedana entre os
quatro processos que compõe a mente. No entanto, quando a define mais
precisamente, ele fala de vedana como tendo aspectos tanto
físicos quanto mentais. A matéria sozinha não consegue sentir nada se a mente
não estiver presente. Em um cadáver, por exemplo, não há sensações. É a mente
que sente, mas o que ela sente está emaranhado a um elemento físico.
Esse elemento físico tem importância
central na prática dos ensinamentos do Buda. O propósito da prática é
desenvolver em nós a habilidade para lidar com todas as vicissitudes da vida de
forma equilibrada. Nós aprendemos a fazer isso com a meditação ao observar com
equanimidade qualquer coisa que aconteça dentro de nós. Com essa equanimidade,
podemos quebrar o hábito das reações cegas e, em seu lugar, podemos escolher a
melhor atitude em qualquer situação.
O que quer que experimentamos na vida
se encontra através dos seis portais da percepção: os cinco sentidos e a mente.
E de acordo com a Cadeia das Origens Condicionadas, assim que um contato ocorre
com qualquer desses seis portais, assim que encontramos algum fenômeno, físico
ou mental, uma sensação é produzida. Se nós não dermos atenção ao que ocorre no
corpo, nos manteremos alheios, num nível consciente, à sensação. Nas trevas da
ignorância uma reação inconsciente começa seguindo a sensação, um gostar ou
desgostar momentâneo que se desenvolve como apego ou aversão. Essa reação se
repete e intensifica inúmeras vezes antes de afetar a mente consciente.
Se os meditadores dão importância
somente ao que acontece na mente consciente, eles se tornam cientes do processo
depois que a reação já aconteceu e ganhou força suficiente para dominá-los.
Eles permitem que a faísca de sensação acenda um fogo perigoso antes de tentar
extingui-la, trazendo dificuldades desnecessárias para si mesmos. Mas se os
meditadores aprendem a observar as sensações dentro do corpo objetivamente,
eles permitem que cada faísca se acenda sozinha sem
iniciar a combustão. Dando importância ao aspecto físico, tornam-se atentos a vedana assim
que ela surge, e podem prevenir-se de qualquer reação.
O aspecto físico de vedana é
particularmente importante porque oferece uma experiência vívida e tangível da
realidade da impermanência dentro de nós mesmos. Mudanças ocorrem a cada
momento dentro de nós, manifestando-se no jogo das sensações. É nesse nível que
a impermanência deve ser experimentada. A observação das sensações
constantemente mudando permite o conhecimento da nossa própria natureza
efêmera. Esse conhecimento torna óbvia a futilidade do apego a algo que é tão
transitório. Assim a experiência direta de anicca automaticamente
faz surgir o desapego, com o qual nós podemos não só evitar reações novas de
desejo e repulsa, mas também eliminar o próprio hábito de reagir. Dessa forma
nós gradualmente liberamos a mente do sofrimento. A não ser que o aspecto
físico seja incluído, a atenção a vedana permanece parcial e
incompleta. Por isso o Buda repetidamente enfatizava a importância da
experiência da impermanência através das sensações físicas. Ele disse:
“Aquele que continuamente se esforça
em dirigir sua atenção por todo o corpo, que se abstém de ações indignas, e que
procura fazer o que deve ser feito, tal pessoa consciente, com pleno
entendimento, está livre de impurezas” [3]
As causas do sofrimento são tanha: desejo
e aversão. Normalmente nos parece que geramos reações de desejo e aversão pelos
vários objetos que nos deparamos através dos cinco sentidos e a mente. O Buda,
no entanto, descobriu que entre o objeto e a reação existe um elo perdido: vedana.
Nós reagimos não à realidade exterior, mas às sensações dentro de nós. Quando
aprendemos a observar as sensações sem reagir com desejo ou aversão, a causa do
sofrimento não surge, e o sofrimento acaba. Portanto, observarvedana é
essencial para praticar o que o Buda ensinou. E essa observação deve ser feita
no nível das sensações físicas, se quisermos que a consciência de vedana seja
completa. Com a consciência das sensações físicas nós podemos penetrar na raiz
do problema e removê-lo. Podemos observar nossa própria natureza até as
profundezas e nos liberarmos do sofrimento.
Compreendendo a importância central
da observação das sensações nos ensinamentos do Buda, nós podemos obter um
entendimento fresco doSatipatana Sutta. O discurso começa listando os
objetivos de satipatana, de estabelecer a Atenção Plena:
“A purificação dos seres; A
transcendência da tristeza e lamentações; A extinção do sofrimento físico e
mental; A prática de um caminho para a verdade; A experiência direta da
realidade última, o Nibbana“ [4]
Ele então rapidamente explica como atingir esses objetivos:
“Assim um meditador permanece ardente
em completo entendimento e consciência, observando corpo no corpo, observando
sensações nas sensações; observando mente na mente, observando os conteúdos da
mente nos conteúdos da mente, havendo abandonado o desejo e a aversão pelo
mundo” [4]
O que ele quer dizer com “observando
o corpo no corpo, sensações nas sensações” e assim por diante? Para um
meditador de Vipassana, essas expressões são luminosas em sua claridade. Corpo,
sensações, mente e conteúdo mental são as quatro dimensões de um ser humano.
Para entender esse fenômeno humano corretamente, cada um de nós deve
experimentar a realidade de nós mesmos diretamente. Para atingir essa
experiência direta, o meditador deve desenvolver duas qualidades: Atenção Plena
(sati) e Entendimento Completo (sampajana). O discurso é chamado
“O Estabelecimento da Atenção Plena”, mas a atenção é incompleta sem o
entendimento, uma visão profunda da nossa própria natureza, dentro da
impermanência desse fenômeno que nós chamamos “eu”.
A prática do satipatana leva
os meditadores a perceberem suas naturezas essencialmente efêmeras. Quando eles
têm essa percepção pessoal, então a Atenção Plena fica firmemente estabelecida
– atenção correta conduzindo à liberação. Então automaticamente o desejo e a
aversão desaparecem, não somente em relação ao mundo externo, mas também em
relação ao mundo interno, onde o desejo e a aversão estão mais profundamente
assentados e mais comumente despercebidos – no apego irracional e visceral ao
nosso corpo e à nossa mente. Enquanto esse apego subjacente persistir, nós não
poderemos estar livres do sofrimento.
O “Discurso do Estabelecimento da
Atenção Plena” primeiramente discute a observação do corpo. Esse é o aspecto
mais aparente da estrutura física-mental e, portanto, o ponto apropriado por
onde iniciar o trabalho da auto-observação. A partir daqui, a observação das
sensações, da mente e dos conteúdos mentais naturalmente se desenvolve. O
discurso explica várias maneiras para iniciar a observar o corpo. A primeira e
mais comum é a atenção à respiração. Outra maneira de começar é dando atenção
aos movimentos corporais. Mas independente
de como iniciamos a jornada, há certos estágios que devemos passar no caminho à
meta final. Eles são descritos num parágrafo de importância crucial no
discurso:
“Dessa forma ele permanece observando
corpo no corpo, internamente ou externamente, ou tanto interna quanto
externamente. Ele permanece observando o fenômeno dos surgimentos no corpo. Ele
permanece observando os fenômenos de desaparecer no corpo. Ele observa os
fenômenos de surgir e de desaparecer no corpo. Agora a Atenção se apresenta à
ele: “Isto é corpo”. Essa atenção se desenvolve a tal nível que só restam o
discernimento e a observação, e ele permanece desapegado sem desejar nada no
mundo” [4]
A grande importância dessa passagem
se mostra pelo fato de que ela é repetida não somente no final de cada sessão
sobre a observação do corpo, mas também dentro das várias e sucessivas divisões
do discurso que trata da observação das sensações, da mente e dos conteúdos
mentais. (Nessas três últimas sessões a palavra corpo é substituída por
sensações, mente e conteúdos mentais, respectivamente) Essa passagem, então,
descreve o lugar comum na prática do satipatana. Devido às
dificuldades que ele apresenta, sua interpretação variou amplamente. No entanto
as dificuldades desaparecem quando a passagem é entendida como referindo-se à
atenção às sensações. Na prática do satipatana, os meditadores
devem atingir uma compreensão profunda de suas próprias naturezas. A ferramenta
para essa visão penetrante é a observação das sensações incluindo
automaticamente a observação das outras três dimensões do fenômeno humano.
Portanto, apesar de que os primeiros passos possam diferir, a partir de certo
ponto a prática deve envolver a atenção às sensações.
Então, o trecho explica, os
meditadores começam observando as sensações surgindo no interior do corpo ou no
exterior, na superfície do corpo, ou em ambos. Isto é, da atenção a algumas
partes e não em outras, eles gradualmente desenvolvem a habilidade de perceber
sensações por todo o corpo. Quando eles começam a praticar, podem inicialmente
perceber sensações de natureza intensa que surgem e parecem persistir por algum
tempo. Os meditadores estão cientes de seu surgimento e, depois de algum tempo,
de seu desaparecimento. Neste estágio eles ainda estão experimentando a
realidade aparente do corpo e da mente, suas naturezas integradas,
aparentemente sólidas e duradouras. Mas conforme continuamos praticando, um
estágio é atingido no qual a solidez se dissolve espontaneamente, e a mente e o
corpo são experimentados em sua verdadeira natureza como uma massa de
vibrações, surgindo e desaparecendo a cada momento. Com essa experiência,
finalmente compreendemos o que o corpo, as sensações, a mente e os conteúdos
mentais realmente são: um fluxo de fenômenos impessoais constantemente mudando.
A apreensão direta, da realidade
última, da mente e da matéria, progressivamente destrói nossas ilusões,
confusões e preconceitos. Até mesmo idéias corretas, que antes eram aceitas por
fé ou dedução intelectual, adquirem novo significado quando experimentadas.
Gradualmente, através da observação da realidade interna, todo o
condicionamento que distorcem a percepção é eliminado. Somente a pura atenção e
a sabedoria permanecem.
Conforme a ignorância desaparece, as
tendências subjacentes de desejo e de aversão são erradicadas, e o meditador se
torna livre de todos os apegos – sendo o apego mais profundo aquele voltado ao
próprio corpo e mente. Quando esse apego é eliminado, o sofrimento desaparece e
nos tornamos liberados.
O Buda costumava dizer:
“O que quer que sintamos está relacionado ao sofrimento”
“O que quer que sintamos está relacionado ao sofrimento”
Portanto, vedana é
um meio ideal para explorar a verdade do sofrimento. Sensações desagradáveis
são obviamente sofrimento, mas as sensações mais prazerosas são também uma
forma de agitação sutil. Toda sensação é impermanente. Se estamos apegados a
sensações prazerosas, quando elas vão embora, o sofrimento aparece. Então toda
sensação contém uma semente de sofrimento. Por essa razão, enquanto falava do
caminho que conduz ao fim do sofrimento, o Buda falava do caminho que conduz o
surgimento de vedana e do que conduz ao seu fim. Enquanto
estivermos no campo condicionado da
mente e da matéria, sensações e sofrimento persistirão. Elas cessam somente
quando nós transcendemos esse campo para experimentar a realidade última do nibbana.
O Buda disse:
“Um homem não está aplicando o Dhamma em
sua vida só porque fala muito sobre budismo. Mas mesmo que alguém tenha ouvido
muito pouco sobre isso, se ele vê a Lei da Natureza através do seu próprio
corpo, então realmente vive de acordo com ela, e não pode jamais esquecer do Dhamma.”
[5]
Nossos próprios corpos são
testemunhos da verdade. Quando os meditadores descobrem a verdade interna, ela
se torna real para eles, e eles vivem de acordo com ela. Cada um de nós pode
perceber essa verdade aprendendo a observar as sensações dentro de nós mesmos,
e fazendo assim podemos atingir a liberação do sofrimento.
Fonte Original: “A Arte de Viver” –
Meditação Vipassana conforme S. N. Goenka – de William Hart
[3] - Titthayatana Sutta (em inglês)
[4] – Satipatana Sutta
[5] – Dhammapada
Fonte:http://www.livredesi.com/budismo-sensacoes-completo/
Vipassana, Buda e as sensações
Apêndice do livro A Arte de
Viver – Meditação Vipassana conforme S. N. Goenka de William Hart. Traduzido
por Sebastian Valle para o Livre de Si.
Os ensinamentos do Buda são um
sistema para desenvolver auto-conhecimento como um meio de auto-transformação.
Através da obtenção de um entendimento experimental da realidade de nossa
própria natureza, podemos eliminar as incompreensões que nos levam a agir mal e
a fazer-nos infelizes. Nós aprendemos a agir de acordo com a realidade e, desse
modo, a levar vidas produtivas, úteis e felizes.
No Sutta Satipatana,
o “discurso do estabelecimento da Atenção Plena”, o Buda apresentou um método
prático para desenvolver auto-conhecimento através da auto-observação. Essa
técnica é a meditação Vipassana.
Qualquer tentativa de observar a
verdade sobre nós mesmos imediatamente revela que isso que chamamos de “si
mesmo” tem dois aspectos: físico e psíquico, corpo e mente. Nós devemos
aprender a observar ambos. Mas como podemos realmente experimentar a realidade
do corpo e da mente? Aceitar as explicações de outros não é suficiente, nem
tampouco é dependendo de mero conhecimento intelectual. Ambos podem guiar-nos
no trabalho da auto-exploração, mas cada um de nós deve explorar e experimentar
a realidade diretamente dentro de nós mesmos.
Cada um de nós experimenta a
realidade do corpo sentindo-o, através das sensações físicas que surgem dentro
dele. Com os olhos fechados nós sabemos que temos mãos, ou qualquer outra parte
do corpo, porque podemos senti-los. Assim como um livro tem uma forma externa e
um conteúdo interno, a estrutura física tem uma realidade externa e objetiva –
o corpo (kaya) – e uma realidade interna e subjetiva – a sensação (vedana).
Nós usufruimos de um livro lendo as palavras dele, nós experimentamos o corpo
tendo sensações. Sem atenção às sensações não pode haver conhecimento direto da
estrutura física. Os dois são inseparáveis.
Similarmente, a estrutura física pode
ser analisada em forma e conteúdo: a mente (citta) e qualquer coisa que
surja na mente (dhamma) – qualquer pensamento, emoção, memória,
esperança, medo, qualquer evento mental. Como corpo e sensação não podem ser
experimentados separadamente, nós não podemos observar a mente separada do
conteúdo da mente. Mas mente e matéria também estão estreitamente
inter-relacionadas. Qualquer coisa que ocorre em um se reflete no outro. Esse
foi um descobrimento-chave do Buda, de importância crucial em seus
ensinamentos. Como ele mesmo expressou:
“O que quer que surja na mente é
acompanhado por uma sensação“. [1]
Dessa forma, a observação das sensações oferece meios de examinar a
totalidade de nosso ser, tanto físico quanto mental. Essas quatro dimensões da
realidade são comuns a todo ser humano: Os aspectos físicos do corpo e
sensações; e os aspectos psíquicos da mente e seu conteúdo. Eles provêm as
quatro divisões do Sutta Satipatana, os quatro caminhos para o
estabelecimento da Atenção Plena, os quatro pontos-de-vista favoráveis para a
observação do fenômeno humano. Se essa investigação tem que ser completa, então
todas as facetas devem ser experimentadas. E todas as quatro podem ser
experimentadas ao observar vedana. Por essa razão o Buda
especialmente insistia na importância da atenção a vedana. No Sutta
Brahmajala, um dos seus discursos mais importantes, ele disse:
“O iluminado se tornou livre de todos
os apegos ao ver que os apegos eram, na verdade, o surgimento e desaparecimento
das sensações, o desfrute deles, o perigo deles, o livrar-se deles”
Atenção a vedana, ele
afirmava, é um pré-requisito para o entendimento das Quatro Nobres Verdades:
“Para a pessoa que experimenta as
sensações eu mostro o caminho da compreensão do que é o sofrimento, sua origem,
seu fim, e o caminho que leva ao fim do sofrimento” [2]
O que é exatamente vedana?
O Buda a descreve de várias maneiras. Ele incluiu vedana entre
os quatro processos que compõe a mente. No entanto, quando a define mais
precisamente, ele fala de vedanacomo tendo aspectos tanto físicos
quanto mentais. A matéria sozinha não consegue sentir nada se a mente não
estiver presente. Em um cadáver, por exemplo, não há sensações. É a mente que
sente, mas o que ela sente está emaranhado a um elemento físico.
Esse elemento físico tem importância
central na prática dos ensinamentos do Buda. O propósito da prática é
desenvolver em nós a habilidade para lidar com todas as vicissitudes da vida de
forma equilibrada. Nós aprendemos a fazer isso com a meditação ao observar com
equanimidade qualquer coisa que aconteça dentro de nós. Com essa equanimidade,
podemos quebrar o hábito das reações cegas e, em seu lugar, podemos escolher a
melhor atitude em qualquer situação.
O que quer que experimentamos na vida
se encontra através dos seis portais da percepção: os cinco sentidos e a mente.
E de acordo com a Cadeia das Origens Condicionadas, assim que um contato ocorre
com qualquer desses seis portais, assim que encontramos algum fenômeno, físico
ou mental, uma sensação é produzida. Se nós não dermos atenção ao que ocorre no
corpo, nos manteremos alheios, num nível consciente, à sensação. Nas trevas da
ignorância uma reação inconsciente começa seguindo a sensação, um gostar ou
desgostar momentâneo que se desenvolve como apego ou aversão. Essa reação se
repete e intensifica inúmeras vezes antes de afetar a mente consciente.
Se os meditadores dão importância
somente ao que acontece na mente consciente, eles se tornam cientes do processo
depois que a reação já aconteceu e ganhou força suficiente para dominá-los.
Eles permitem que a faísca de sensação acenda um fogo perigoso antes de tentar
extingui-la, trazendo dificuldades desnecessárias para si mesmos. Mas se os
meditadores aprendem a observar as sensações dentro do corpo objetivamente,
eles permitem que cada faísca se acenda sozinha sem iniciar a combustão. Dando
importância ao aspecto físico, tornam-se atentos a vedana assim
que ela surge, e podem prevenir-se de qualquer reação.
O aspecto físico de vedana é
particularmente importante porque oferece uma experiência vívida e tangível da
realidade da impermanência dentro de nós mesmos. Mudanças ocorrem a cada
momento dentro de nós, manifestando-se no jogo das sensações. É nesse nível que
a impermanência deve ser experimentada. A observação das sensações
constantemente mudando permite o conhecimento da nossa própria natureza
efêmera. Esse conhecimento torna óbvia a futilidade do apego a algo que é tão
transitório. Assim a experiência direta de anicca automaticamente
faz surgir o desapego, com o qual nós podemos não só evitar reações novas de
desejo e repulsa, mas também eliminar o próprio hábito de reagir. Dessa forma
nós gradualmente liberamos a mente do sofrimento. A não ser que o aspecto
físico seja incluído, a atenção a vedanapermanece parcial e
incompleta. Por isso o Buda repetidamente enfatizava a importância da
experiência da impermanência através das sensações físicas. Ele disse:
“Aquele que continuamente se esforça
em dirigir sua atenção por todo o corpo, que se abstém de ações indignas, e que
procura fazer o que deve ser feito, tal pessoa consciente, com pleno
entendimento, está livre de impurezas” [3]
As causas do sofrimento são tanha: desejo
e aversão. Normalmente nos parece que geramos reações de desejo e aversão pelos
vários objetos que nos deparamos através dos cinco sentidos e a mente. O Buda,
no entanto, descobriu que entre o objeto e a reação existe um elo perdido: vedana.
Nós reagimos não à realidade exterior, mas às sensações dentro de nós. Quando
aprendemos a observar as sensações sem reagir com desejo ou aversão, a causa do
sofrimento não surge, e o sofrimento acaba. Portanto, observarvedana é
essencial para praticar o que o Buda ensinou. E essa observação deve ser feita
no nível das sensações físicas, se quisermos que a consciência devedana seja
completa. Com a consciência das sensações físicas nós podemos penetrar na raiz
do problema e removê-lo. Podemos observar nossa própria natureza até as
profundezas e nos liberarmos do sofrimento.
Compreendendo a importância central
da observação das sensações nos ensinamentos do Buda, nós podemos obter um
entendimento fresco doSatipatana
Sutta. O discurso começa listando os objetivos de satipatana,
de estabelecer a Atenção Plena:
“A purificação dos seres; A
transcendência da tristeza e lamentações; A extinção do sofrimento físico e
mental; A prática de um caminho para a verdade; A experiência direta da
realidade última, o Nibbana“ [4]
Ele então rapidamente explica como
atingir esses objetivos:
“Assim um meditador permanece ardente
em completo entendimento e consciência, observando corpo no corpo, observando
sensações nas sensações; observando mente na mente, observando os conteúdos da
mente nos conteúdos da mente, havendo abandonado o desejo e a aversão pelo
mundo” [4]
O que ele quer dizer com “observando
o corpo no corpo, sensações nas sensações” e assim por diante? Para um
meditador de Vipassana, essas expressões são nítidas em sua claridade. Corpo,
sensações, mente e conteúdo mental são as quatro dimensões de um ser humano.
Para entender esse fenômeno humano corretamente, cada um de nós deve
experimentar a realidade de nós mesmos diretamente. Para atingir essa
experiência direta, o meditador deve desenvolver duas qualidades: Atenção Plena
(sati) e Entendimento Completo (sampajana). O discurso é chamado
“O Estabelecimento da Atenção Plena”, mas a atenção é incompleta sem o
entendimento, uma visão profunda da nossa própria natureza, dentro da
impermanência desse fenômeno que nós chamamos “eu”.
A prática do satipatana leva
os meditadores a perceberem suas naturezas essencialmente efêmeras. Quando eles
têm essa percepção pessoal, então a Atenção Plena fica firmemente estabelecida
– atenção correta conduzindo à liberação. Então automaticamente o desejo e a
aversão desaparecem, não somente em relação ao mundo externo, mas também em
relação ao mundo interno, onde o desejo e a aversão estão mais profundamente
assentados e mais comumente despercebidos – no apego irracional e visceral ao
nosso corpo e à nossa mente. Enquanto esse apego subjacente persistir, nós não
poderemos estar livres do sofrimento.
O “Discurso do Estabelecimento da Atenção Plena” primeiramente discute a
observação do corpo. Esse é o aspecto mais aparente da estrutura física-mental
e, portanto, o ponto apropriado por onde iniciar o trabalho da auto-observação.
A partir daqui, a observação das sensações, da mente e dos conteúdos mentais
naturalmente se desenvolve. O discurso explica várias maneiras para iniciar a
observar o corpo. A primeira e mais comum é a atenção à respiração. Outra
maneira de começar é dando atenção aosmovimentos corporais.
Mas independente de como iniciamos a jornada, há certos estágios que devemos
passar no caminho à meta final. Eles são descritos num parágrafo de importância
crucial no discurso:
“Dessa forma ele permanece observando corpo no corpo, internamente ou externamente, ou tanto interna quanto externamente. Ele permanece observando o fenômeno dos surgimentos no corpo. Ele permanece observando os fenômenos de desaparecer no corpo. Ele observa os fenômenos de surgir e de desaparecer no corpo. Agora a Atenção se apresenta à ele: “Isto é corpo”. Essa atenção se desenvolve a tal nível que só restam o discernimento e a observação, e ele permanece desapegado sem desejar nada no mundo” [4]
“Dessa forma ele permanece observando corpo no corpo, internamente ou externamente, ou tanto interna quanto externamente. Ele permanece observando o fenômeno dos surgimentos no corpo. Ele permanece observando os fenômenos de desaparecer no corpo. Ele observa os fenômenos de surgir e de desaparecer no corpo. Agora a Atenção se apresenta à ele: “Isto é corpo”. Essa atenção se desenvolve a tal nível que só restam o discernimento e a observação, e ele permanece desapegado sem desejar nada no mundo” [4]
A grande importância dessa passagem
se mostra pelo fato de que ela é repetida não somente no final de cada sessão
sobre a observação do corpo, mas também dentro das várias e sucessivas divisões
do discurso que trata da observação das sensações, da mente e dos conteúdos
mentais. (Nessas três últimas sessões a palavra corpo é substituída por
sensações, mente e conteúdos mentais, respectivamente) Essa passagem, então,
descreve o lugar comum na prática do satipatana. Devido às
dificuldades que ele apresenta, sua interpretação variou amplamente. No entanto
as dificuldades desaparecem quando a passagem é entendida como referindo-se à
atenção às sensações. Na prática do satipatana, os meditadores
devem atingir uma compreensão profunda de suas próprias naturezas. A ferramenta
para essa visão penetrante é a observação das sensações incluindo
automaticamente a observação das outras três dimensões do fenômeno humano.
Portanto, apesar de que os primeiros passos possam diferir, a partir de certo
ponto a prática deve envolver a atenção às sensações.
Então, o trecho explica, os
meditadores começam observando as sensações surgindo no interior do corpo ou no
exterior, na superfície do corpo, ou em ambos. Isto é, da atenção a algumas
partes e não em outras, eles gradualmente desenvolvem a habilidade de perceber
sensações por todo o corpo. Quando eles começam a praticar, podem inicialmente
perceber sensações de natureza intensa que surgem e parecem persistir por algum
tempo. Os meditadores estão cientes de seu surgimento e, depois de algum tempo,
de seu desaparecimento. Neste estágio eles ainda estão experimentando a
realidade aparente do corpo e da mente, suas naturezas integradas,
aparentemente sólidas e duradouras. Mas conforme continuamos praticando, um
estágio é atingido no qual a solidez se dissolve espontaneamente, e a mente e o
corpo são experimentados em sua verdadeira natureza como uma massa de
vibrações, surgindo e desaparecendo a cada momento. Com essa experiência,
finalmente compreendemos o que o corpo, as sensações, a mente e os conteúdos
mentais realmente são: um fluxo de fenômenos impessoais constantemente mudando.
A apreensão direta, da realidade
última, da mente e da matéria, progressivamente destrói nossas ilusões, confusões
e preconceitos. Até mesmo idéias corretas, que antes eram aceitas por fé ou
dedução intelectual, adquirem novo significado quando experimentadas.
Gradualmente, através da observação da realidade interna, todo o
condicionamento que distorcem a percepção é eliminado. Somente a pura atenção e
a sabedoria permanecem.
Conforme a ignorância desaparece, as
tendências subjacentes de desejo e de aversão são erradicadas, e o meditador se
torna livre de todos os apegos – sendo o apego mais profundo aquele voltado ao
próprio corpo e mente. Quando esse apego é eliminado, o sofrimento desaparece e
nos tornamos liberados. O Buda costumava dizer:
“O que quer que sintamos está
relacionado ao sofrimento”
Portanto, vedana é
um meio ideal para explorar a verdade do sofrimento. Sensações desagradáveis
são obviamente sofrimento, mas as sensações mais prazerosas são também uma
forma de agitação sutil. Toda sensação é impermanente. Se estamos apegados a
sensações prazerosas, quando elas vão embora, o sofrimento aparece. Então toda
sensação contém uma semente de sofrimento. Por essa razão, enquanto falava do caminho
que conduz ao fim do sofrimento, o Buda falava do caminho que conduz o
surgimento de vedana e do que conduz ao seu fim. Enquanto
estivermos no campo condicionado da mente e da matéria, sensações e sofrimento
persistirão. Elas cessam somente quando nós transcendemos esse campo para
experimentar a realidade última do nibbana. O Buda disse:
“Um homem não está aplicando o Dhamma em
sua vida só porque fala muito sobre isso. Mas mesmo que alguém tenha ouvido
muito pouco sobre isso, se ele vê a Lei da Natureza através do seu próprio
corpo, então realmente vive de acordo com ela, e não pode jamais esquecer do Dhamma.”
[5]
Nossos próprios corpos são
testemunhos da verdade. Quando os meditadores descobrem a verdade interna, ela
se torna real para eles, e eles vivem de acordo com ela. Cada um de nós pode
perceber essa verdade aprendendo a observar as sensações dentro de nós mesmos,
e fazendo assim podemos atingir a liberação do sofrimento.
[3] - Titthayatana Sutta (em inglês)
[5] – Dhammapada
(ver também Samiddhi Sutta e introdução ao Satipatana Sutta)
Fonte: A Arte de Viver –
Meditação Vipassana conforme S. N. Goenka de William Hart traduzido por
Sebastian Valle para o Livre de Si
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